[12:48 AM]
A previsão para o dia de folga era de tempo quente, término de um dos livros, três filmes no cinema e uma boa janta na mesa. Como já era de se esperar, todos os compromissos ficaram pela metade. Ainda vou me conformar com a decisão que meu organismo sempre toma, arbitrariamente, nos dias em que não trabalho, de deixar o corpo em repouso, fazendo o mínimo de esforço possível. O dia foi nublado, li os habituais 95% do livro e o joguei de lado, vi apenas um filme e terminei com um Miojo de galinha caipira no prato. Pelo menos isso. Nunca curti o de carne. E tenho comigo que, se nem o Miojo é bom, é porque as coisas não vão nada bem. Mas enfim.
Fui ver Se Nada Mais Der Certo, do José Eduardo Belmonte, que entrou em cartaz após dois anos de atraso. O cara também fez A Concepção, um filme que tratava do caos que permeia as ruas das metrópoles brasileiras e na reverberação desse caos sobre as pessoas. É sujo, intenso, com aquela câmera tremida que procura refletir o estado de espírito desgovernado de um ambiente que se despedaça lentamente. A abordagem dos dois filmes é semelhante, mas A Concepção é mais enxuto, com uma fluência de ritmo mais bem trabalhada.
O elemento central da narrativa que motiva a ação de vários personagens de ambos os filmes também é similar, e parece ser o principal ponto de discussão do cinema de Belmonte: a questão da perda de identidade. A Concepção era radical em sua proposta de demolição de uma sociedade civil vinculada às leis do sistema vigente, e propunha a criação de um meio de vida independente, desbundado e que fosse de encontro à moral cristã do Estado. O primeiro feito transgressivo rumo à liberdade individual era queimar a carteira de identidade.
Se Nada Mais Der Certo é mais maleável na proposta, embora todos os personagens sofram da mesma crise e seus atos sejam resultados diretos dessa turbulência interior. Não é à toa que a personagem de Carolina Abras, o andrógino Marcin, seja um ser de comportamento e visual indefinidos. Belmonte confere a essa conjuntura de busca desenfreada uma carga de tensão própria do submundo, onde a montagem dinâmica e entrecortada ajuda a minimizar a excessiva duração do filme. Podia ter fácil uns 20 minutos a menos. Mas a força com que amarra a relação entre seus personagens, perdidos numa selva de pedra fria e indiferente, verdadeira paulicéia desvairada, se sobressai e acaba soando como um aceno esperançoso para retratos tão destrutivos, prisioneiros de sucessivos fracassos e crescentes frustrações.
Belmonte avança outro passo em direção a um cinema que busca a verdade das ruas, negando artificialismos e se ancorando numa proposta verossímil de realidade objetiva. É uma forma de expressão que o cinema nacional atual insiste em negar ou tratar de forma derivativa, falsa, maquiada. Ainda que irregular, Belmonte começa a empregar consistência no projeto de cinema que vem delineando, incômodo e imperfeito, porém honesto.
Superior ao seu predecessor, Se Nada Mais Der Certo habita, juntamente com Moscou, o oásis de qualidade que se formou em meio ao deserto do nosso circuito ficcional em 2009. Possui a coragem e a pulsação que escapa ao peito dos demais cineastas brasileiros contemporâneos, afogados em meio a um mar de comodismos e soluções fáceis e esquecidos de que, para fazer cinema, é preciso estar sempre atento e forte.
|