qualquer coisa
num verso intitulado mal secreto
 

27.5.11


[12:02 AM]

Noel tinha razão: o cinema falado é mesmo o culpado por toda a transformação. Se não, o que mais explica o fato de jamais ter surgido obra como Aurora? Na canção de dois humanos orquestrada por Murnau, nada desafina. Realizado em 1927, mesmo ano do surgimento do cinema sonoro, o filme impressiona em vários aspectos, principalmente pela naturalidade com que trafega por gêneros distintos e a maneira como, alternando instantes de tensão e lirismo com outros de arrebatamento puramente visual, arquiteta espaços heterogêneos e imprime uma harmonia consistente ao todo. A parte inicial, mais sombria, é de arrepiar: traz toda a atmosfera pesada do expressionismo alemão e se pauta pela presença fulminante de George O’Brien, cordeiro em pele de lobo. Mas depois da tempestade, já diz o ditado, vem a calmaria.

Muito se falou sobre o filme, e talvez a definição mais inspirada seja a de Scorsese (“um poema visual”), mas uma coisa eu não lembro de ter visto por aí: ao contar a história de um homem que rejeita a amante para ficar com a esposa, sua resistência ante a tentação, Murnau refaz o Gênesis. A serpente desliza provocante ao redor de Adão, destila seu veneno, força-o a comer a maçã – e ele mordisca, mas não vacila. Ao expulsá-la dos jardins do Éden, Murnau livra a humanidade da cruz do pecado e reescreve a história da civilização cristã. Mais uma vez, o cinema muda o mundo. E sem uma palavra sequer.



 


é isso aí, bicho

 

23.5.11


[10:53 PM]






 


é isso aí, bicho

 

18.5.11


[11:49 PM]

A última página de A Chuva Imóvel (1963), de Campos de Carvalho:
“Tentaram reduzir-me a pó e não me reduziram, aqui estou eu com a minha corda e com a minha consciência, íntegro e íntegro, fora do alcance de suas armas de longo alcance, de suas experiências homicidas ou suicidas, fora do seu sistema solar ou de qualquer outro sistema – eu o rebelde, o rebelado, mesmo que apenas um desertor: o desertor no deserto.
Levarão séculos para me içar, se é que estão realmente içando, e enquanto dure esta longa ascensão do meu cadáver, mas também do que está dentro dele, eu e não ele – continuarei minuto a minuto a cuspir-lhes do fundo da minha consciência, com esta corda no pescoço mas cuspindo, em sinal de protesto e sobretudo de nojo – por mim e por todos esses que morreram nos meus testículos, que morreram ou que estão morrendo, juntamente comigo morrendo, nesta matança dos inocentes.
Mesmo morto continuarei dando meu testemunho de morto. Esta chuva imóvel serei eu que estarei cuspindo.”




 


é isso aí, bicho

 

17.5.11


[12:14 AM]





 


é isso aí, bicho

 

12.5.11


[2:41 PM]

Uma pincelada dos álbuns que embalam minha existência e justificam a opção pelo politeísmo. 12 discos e vários segredos.


Syd Barrett - The Madcap Laughs (1970)
Poesia dissonante. Estreando em carreira solo, nu com sua música, Syd desafina enquanto uiva os lamentos de quem não quer ser esquecido. Sem firulas, o melhor álbum do Pink Floyd.

Tim Buckley - Greetings from L.A. (1972)
Los Angeles endemoninhada, hedonista, bêbada, num disco com pegada rock e acento soul. Ideal para longas viagens e rodovias que não terminam.

Curtis Mayfield - There's no Place Like America Today (1973)
Difícil escolher uma única obra do cara em meio a tantas maravilhas, mas esta se sobressai em função de duas palavras: "Billy Jack". E ainda há "So in Love", uma das músicas mais inspiradas sobre momentos de inspiração.

Neil Young - On the Beach (1974)
O lado A é para manhãs ensolaradas, enquanto o B emoldura um entardecer frio, de ventos cortantes, sozinho na beira do mar. Neil Young sempre me seduziu mais pela fragilidade do que pela fúria, e por isso este é meu álbum preferido de sua extensa discografia.

Lou Reed - Coney Island Baby (1976)
Celebração da lisergia com uma sucessão de canções memoráveis. "A Gift", meu hino.

João Gilberto – João Gilberto (1973)
De todos os discos do João, este é o que emula com a intimidade de quem lá nasceu a brisa que só se sente na Bahia. Um autêntico diamante lapidado, com uma canção de fazer chorar: “É Preciso Perdoar”.

Bowery Electric – Beat (1996)
Minimalismo, atmosfera, lirismo - como se o My Bloody Valentine se desnudasse de suas guitarras e rumasse para outros nortes em busca de novos tons e texturas. Todos os discos aqui listados funcionam muito bem na cama (em qualquer ocasião), mas este, por se aproximar de uma ambiência própria ao trip-hop, é ultra indicado para momentos em duo – em especial “Empty Words”, tão boa quanto som de chuva.

Hank Mobley - Soul Station (1960)
Um colosso do jazz. O saxofone além de Coltrane, com um quarteto que certamente está entre os melhores de toda a história da música popular. O piano de Wynton Kelly descreve os suaves movimentos de uma nuvem, enquanto Art Blakey pavimenta o caminho para que o sax de Mobley mostre toda a musicalidade do seu fraseado. “Dig Dis” e ponto final.

Nelson Cavaquinho – Nelson Cavaquinho (1973)
Embora o tom de várias canções seja amargo e com um bocado de melancolia, como todo samba que se preze, este é o melhor disco para as manhãs de sábado. E, se o mais recomendável remédio para a tristeza é a música, não há como resistir aos encantos de simplicidade com que o canto de Nelson pede consolo. Aqui, o que importa não são as escalas matemáticas, mas o coração.

Esther Phillips - Alone Again (Naturally) (1972)
Uma voz espetacular num momento de elevação suprema. Poucas cantoras dominam tanto a modulação vocal quanto Esther, e aqui há uma interação tão potente entre canto e instrumental que sentiu-se um tremor do lado de fora do castelo onde, à época, reinava soberana Aretha Franklin. Esther não chega a desbancá-la, mas ameaça. E “Let’s Move and Groove” é o atestado dessa força arrasadora. No mesmo ano ela ainda gravaria outro discaço, com uma cover de Gil Scott-Heron que está entre as canções escolhidas a dedo para embalar meu funeral.

The Rolling Stones - Exile on Main St. (1972)
O monolito de 2001, indecifrável, inevitável, irresistível. Os quatro lados que definem toda a história do rock’n’roll. Meu disco de cabeceira.

Jorge Ben – Solta o Pavão (1975)
Com várias músicas gestadas no mesmo ventre de “A Tábua de Esmeralda”, o pavão de Jorge, mesmo com toda sua exuberância e riqueza musical, acabou negligenciado em função do retumbante e merecido sucesso de seu irmão mais velho. O que é uma injustiça das brabas, já que o verdadeiro último disco onde o Babulina toca violão é um apanhado de canções que trafegam com fluente naturalidade na interseção entre o samba e o rock, onde o violão de Jorge aparece solto, inventivo, musical em todas as suas vertentes, verdadeira potência criadora de um estilo que nunca conseguiu ser imitado. E só mesmo a saudade, esse sentimento tão miseravelmente nosso, capaz de inspirar uma canção tão linda como esta:




 


é isso aí, bicho

 

6.5.11


[12:33 PM]


Transformar pela violência (das cores, dos gestos, dos sons e das palavras - inclusive as não ditas)



 


é isso aí, bicho

 

5.5.11


[1:02 PM]

O que Sganzerla quer com Abismu? Fundir cucas desprevenidas e depravadas e mostrar que, dentre os vários modos de filmar, ele prefere todos. Norma Bengell dirigindo pela estrada do Joá numa sucessão de cortes que não levam a lugar algum, exercícios de montagem que não prezam pelo sentido, mas pelo signo, exaltando as possibilidades que o abismo negro anuncia. As figuras icônicas, peças fundamentais em seu cinema (o bandido, a mulher de todos, Zé Bonitinho, o magnata dos quadrinhos), aparecem a todo vapor, devidamente caracterizadas, vulgares, beirando a grosseria - brasileiras. A exceção cabe a Zé do Caixão (sempre ele), ícone por excelência, cuja figura é sutilmente subvertida e dá espaço à elegância de Mojica, que lança o recado aos boçais de todo o mundo: uni-vos!

Voltando da tempestade após sete anos sem filmar, Sganzerla traz as divindades para a tela e explode a ordenação linear das coisas através da música de Jimi Hendrix. Não há o que entender, tentar é perder o prazer de se perder. Se a principal característica de sua obra é a absorção de elementos tipicamente enraizados no manto tupiniquim e regurgitados com a mesma força que os encerra na terra, a cada filme arrancando árvores de pau-brasil e lançando-as com fúria ao Atlântico, estamos, antes mesmo dos filmes, diante de um memorial. Mas, como diria o próprio, “não era arqueologia o que eu fazia, era poesia”.



 


é isso aí, bicho

 

4.5.11


[1:07 AM]

Com um espanto inflamado saí hoje da sessão de revisão de Encarnação do Demônio: não é permitido que a televisão desconfigure aquele que é o ícone máximo de nossa fauna cinematográfica, e não dou nem ao próprio o direito de diluir a força de sua imagem diante de nossos olhos sem que não façamos nada. Pelo menos grito, que é o que me resta. Quem vocês pensam que são?

Na primeira vez, no primeiro fim de semana, na primeira sessão do dia, o impacto inegável da obra sofreu tremores pelo histrionismo com que a personagem do coveiro se apresenta diante de uma nova realidade, realçando o caráter antinaturalista de sua figura, acima do tom, fora do baralho. Foi o amadurecimento dos olhos ou a passagem do tempo? O colírio do movimento é também a pulsação retumbante da direção mais original de todas as tentativas de nosso cinema de gênero na última década, em conjunto com uma montagem espertíssima, oportunista, que deflagra território e insere nosso herói no círculo das principais produções do estilo (tão em voga naquele período e ainda hoje), apontando com unhas tortas para o futuro e encarando com olhos em brasa o tempo passado. “As imagens não morrem, capitão.”

Eu sei. E se há um bode expiatório para que eu possa montar a culpa pelo fracasso de público do filme é a televisão, aparelho revelador que traz em sua miríade de imagens as contradições que alimentam a cultura de massa do Brasil, enquanto hipnotiza meninas de vestidos curtos e vende mentiras (o cinema inclusive), e que por uma questão de atraso e canibalismo suga todo o potencial estético de uma persona pungente como Zé do Caixão.

40 anos de resistência, e a última imagem de Jece Valadão em nosso cinema é a de uma cabeça espetada num pedaço de pau, com um dos olhos vendados. O horror. Ele teria gostado de se despedir assim. Só os gênios usam tapa-olho. E não há potência mais criativa em termos de fogo do que José Mojica Marins em nosso cinema bunda mole. Se você não viu, problema seu. Fica o grito.



 


é isso aí, bicho

 

1.5.11


[6:48 PM]

Um dos problemas da representação do outro no cinema brasileiro contemporâneo está na preparação de elenco. O que faz o preparador? Adequa um fenótipo a um corpo estranho, domestica o inimigo. O outro para o preparador é aquele cuja construção se dá a partir do que se vê, e não do que se é. O outro, portanto, é o produto de um olhar. A ilusão se duplica (e se estrumbica): se a representação objetiva não corresponde completamente à realidade, a composição do outro é uma verdade inventada, forjada através dos desejos de um sujeito determinado.

Ontem, no CCBB, Luís Alberto Rocha Melo disse que a representação por si só é insuficiente para a composição do retrato do outro, e que uma interferência formal seria um caminho menos óbvio para encontrá-lo. Para mim, há uma necessidade culpada de alguns dos filmes mais representativos dessa década em conceder espaço para o outro, procurando inseri-lo objetivamente dentro do campo social através do que se pensa ser uma compreensão de sua subjetividade (Cidade de Deus, Carandiru, 2 Filhos de Francisco). Mas encontrar o outro é necessariamente perdê-lo, e quanto mais próximo esse modelo se encontra de uma replicação cultural mais distante fica a essência de sua natureza. Em boas palavras: só a abolição da preparação de elenco salva o cinema brasileiro.



 


é isso aí, bicho

 

 


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