31.8.11
|
[11:30 PM]
Em uma semana, apertei a mão e ouvi Eduardo Coutinho falar por duas horas, recebi uma ligação da Helena Ignez, fiz a mediação de um bate-papo com o Bruno Safadi e assisti, em película, Vidas Secas, do Nelson Pereira dos Santos. Rio, paraíso da cinefilia.
|
é isso aí,
bicho
|
30.8.11
|
[1:23 AM]
“Sou mestre na arte de falar em silêncio, passei minha vida toda conversando em silêncio e em silêncio acabei vivendo tragédias inteiras comigo mesmo. Oh, pois eu também era infeliz! Fui desprezado por todos, desprezado e esquecido, e ninguém, absolutamente ninguém sabe disso! E depois, de repente, vem essa garota de dezesseis anos, pega de gente infame detalhes sobre a minha vida e pensa que sabe tudo, enquanto o que é secreto continua encerrado no peito deste homem! Eu me calava o tempo todo, e principalmente, e principalmente com ela eu me calava, até ontem mesmo. Por que me calava? Mas que homem orgulhoso! Queria que ela ficasse sabendo por si, sem mim, mas também não pela boca de canalhas, queria que ela própria adivinhasse quem é este homem (...)”
Uma criatura dócil. Fiódor Dostoiévski, 1876
|
é isso aí,
bicho
|
28.8.11
|
[1:02 AM]
A descoberta de um caminho: A Margem desafia a lógica e o equilíbrio para encontrar um novo olhar. Momento de renovação, o primeiro parto do cinema marginal brasileiro se dá num fluxo polifônico que ruma para a fatalidade respirando vida. É isso! Candeias não grita, precede a histeria bandida e consome o velho pelo silêncio (o silêncio que antecede o esporro); a realidade é torta, pungente, mas também misteriosa, sublime. E seu filme quer a todo instante acenar para as vidas pulsantes fora dos centros, nas bordas da sociedade. A ruptura através da forma - só assim é possível. Flaubert, numa mesa de bar tomando conhaque (ou numa escrivaninha de madeira de demolição), escreveu que da forma nasce a ideia. Um corpo que não respeita a ordem. A radicalização enquanto existência. A Margem não quer as estradas, mas os atalhos. E desbrava caminhos atravessando espinhos e encarando de frente: seu olho me olha, mas não me pode alcançar.
|
é isso aí,
bicho
|
27.8.11
|
[11:42 PM]
Um Dia na Vida, mais recente obra do Eduardo Coutinho, é um ato político que prima pela provocação. Uma sucessão de imagens de programas de televisão dispostas de maneira a ressaltar um segundo sentido através do atrito. O único controle do diretor sobre o material está na estruturação da montagem. Coutinho não produziu nada, apenas organizou as seqüências em uma linha cronológica, começando nas primeiras horas da manhã e terminando pela madrugada.
O que a princípio soa como um simples passeio pelos canais da TV aberta logo se transforma numa reflexão sobre a televisão e sobre como uma montagem que reagrupa cenas de conteúdo opostos induz a um questionamento crítico sobre este demonizado veículo de comunicação em massa. Décio Pignatari: só há comunicação quando há diferença. Coutinho enfileira Ana Maria Braga & pastores evangélicos & Jornal Nacional & novela da tarde & Chaves & Márcia Goldschimdt & publicidade & programa de fofocas & todo o circo sensacionalista que impera na programação aberta para procurar perguntas que precisam ser feitas. Todos os questionamentos, porém, só vêm à tona em função do cinema.
No debate após a sessão, Coutinho disse que o troço só existe enquanto exibido numa sala de cinema. Porque é através da transposição da plataforma que atentamos para as implicações políticas do gesto. O meio traz a mensagem. Ao retirar material televisivo da televisão e transportá-lo para o cinema, as imagens permanecem as mesmas, mas o significado que elas adquirem quando dispostas através de uma montagem um tanto irônica (pois pautada pela contradição) desafia as imposições do mercado e todo o ridículo em torno das concessões de espaço público. Sérgio Buarque, há trocentos anos, já assentia que a confusão entre privado e público é um dos principais conflitos que atravessam nossa sociedade. Who watch the watchmen?
Por meio de um dispositivo simples, um mundo de questões. Só não sei se o troço sobrevive a revisões. Seria interessante vê-lo novamente. Certo é que a presença do diretor depois da sessão torna tudo mais interessante e complexo. Coutinho atirou no peito dos que regulam os direitos autorais, esculhambou com as grandes emissoras e acenou para um futuro ainda pior, visto a invasão bárbara das igrejas na grade aberta. "Fascismo religioso", segundo o próprio, do qual é impossível fugir. Tomou emprestado imagens de outrem e deixou que elas mesmas depusessem contra si. Cutucar os concessionários da televisão brasileira é mexer com os grandes latifundiários da comunicação, por isso a importância desse material corajoso, que lança luz sobre um espelho que nem sempre reflete quem somos.
|
é isso aí,
bicho
|
15.8.11
|
[3:13 AM]
Não fosse os russos, o que seria do mundo? Um lugar sem ressaca de vodka e com tenistas que só vestem moletom, no mínimo. E muito menos agradável de viver sem a literatura que lá foi produzida, certamente. Dizer que a leitura de Os Irmãos Karamazov vale uma vida inteira é chover no molhado – não é à toa que este sítio anda ensopado até as botas. Ontem mais uma vez tive a sensação de que a arte russa transcende as barreiras geográficas e nós sabemos bem disso. Pelo menos foi o que me sugeriu a visita que o Grupo Galpão fez a Tio Vânia, peça escrita por Anton Tchekhov e encenada com propriedade pela companhia mineira.
Em seus contos, Tchekhov revela as inquietações e angústias dos personagens por meio de movimentos sutis, delineados com a precisão cirúrgica do médico que suplementava o escritor. Não há grandes arroubos, explosões de ira – os vulcões se internalizam e o que vemos são só as faíscas dos tremores. Certa vez escreveu à atriz com quem se casaria: "Não faça cara triste em momento algum. (...) As pessoas que carregam há muito tempo uma mágoa e a isso se habituaram assoviam de vez em quando e ficam sonhadoras". A contenção é uma das principais marcas dos personagens do russo, e toda sua obra é marcada por uma inexprimível melancolia que não raro vem do olhar para um tempo que passou. É o mesmo olhar para o passado, para os dias de glória que já se foram, que move também as três irmãs da peça de mesmo nome, cujo processo de montagem pelo mesmo Galpão Eduardo Coutinho registrou em Moscou.
Tio Vânia é uma coleção de gestos incompletos, canções em dias de chuva e lamentos pelo que não foi. Uma família trancada em casa por conta de uma tempestade é o mote para raios de cinismo, resignação e revolta, que atravessam todos os que passam pela sala de jantar. Os russos sabem muito bem que a história de uma família é a história do mundo, e o texto de Tchekhov perpassa diversos níveis de dramaticidade para terminar em um monólogo aterrorizante, cuja esperança das palavras é pronunciada como uma marcha fúnebre e iluminada pelo último feixe de luz. Enquanto houver a literatura de Tchekhov, nós nunca descansaremos.
P.S.: A Árvore da Vida é realmente uma experiência sensorial das mais chapantes. Mas a publicidade hoje está tão presente em nossas vidas que acaba por diluir a força que as imagens de Terrence Malick possuem, e em alguns momentos há uma textura tão limpa que eu quase esperei pela logomarca do Itaú ao final. Mesmo assim é revigorante assistir no cinema a um filme com uma crença religiosa tão forte no poder das imagens: seja através da música, da presença alva da protagonista que entrega o filho a Deus e da ambição em recriar visualmente o surgimento do Universo, Malick afirma o caráter religioso do movimento e das pulsões que as coisas emanam. Só existe vida (e, portanto, cinema) quando existe movimento. É o encontro com Beto Guedes: “Tudo que move é sagrado”. Por isso a câmera que se desloca, como num fluxo contínuo, vasculhando o espaço, abrindo caminhos, construindo pontes. E quando ela nos convida a atravessá-las, vem a certeza de que dificilmente sairemos os mesmos.
|
é isso aí,
bicho
|
|
|