qualquer coisa
num verso intitulado mal secreto
 

25.9.11


[12:16 AM]

Lester Bangs e o Rock in Rio, o fim do R.E.M., os 20 anos de Nevermind...

Pensando o impensável sobre John Lennon

A gente nunca sabe como vai reagir a essas coisas, mas não posso dizer que fiquei tão surpreso quando a NBC interrompeu seu "Tonight Show" para anunciar que John Lennon estava morto. Sempre achei que ele seria o primeiro dos Beatles a morrer, porque sempre foi o que mais viveu no limite existencial, seja mergulhando de joelhos na inconseqüência de esquerda ou simplesmente por calar a boca durante cinco anos, quando decidiu que não tinha mais muito a dizer. Mas eu sempre imaginei que seria com as próprias mãos. Que ele tenha sido a mais recente celebridade a ser assassinada por um provável psicótico apenas reforça a banalidade em torno de sua morte.

Veja bem: não creio que eu esteja sendo insensível ou rabugento. Em 1965, John Lennon era uma das pessoas mais importantes do mundo. É só que hoje eu me sinto profundamente alienado do rock'n’roll e do que ele significou ou poderia significar, alienado de meus amigos e amigas mais próximos, de seus sonhos e aspirações.

Não sei o que é mais patético, as pessoas da minha geração que se recusam a deixar sua adolescência nos anos 60 morrer de morte natural, ou os mais jovens, que irão arrancar e devorar qualquer pedaço, qualquer migalha de um sonho que alguém declarou acabado há mais de dez anos.

Talvez os jovens sejam os mais tristes, porque ao menos os meus companheiros ainda têm alguma memória nostálgica das longas e frias lembranças que hoje eles se ajoelham para reavivar, enquanto que os garotos têm de se virar com coisas tipo o show de beatlemania e uma lista de mercadorias de consumo.

Não consigo ficar de luto por John Lennon. Eu não conhecia o cara. Mas sei bem que, depois de tudo que se fez ou falou, isso é tudo que ele era – um cara. Essa recusa de seus fãs, de jamais deixá-lo ser ele mesmo simplesmente, foi por fim quase tão letal quanto seu "assassino" (e, por favor, vamos parar com esse papo de "assassinato político", e não o chame de "mártir do rock'n roll"). Você assistiu aos especiais de TV na terça à noite? Viu todas aquelas pessoas paradas na rua em frente ao edifício Dakota, onde Lennon vivia, cantando "Hey Jude"? O que você acha que o John Lennon real - o cínico, indolente, sarcástico, convulsivamente perspicaz e iconoclasta – teria dito disso tudo?

John Lennon, nos seus melhores momentos, desprezava sentimentalismo barato e teve que aprender da maneira mais difícil que, uma vez que você deixou sua marca na história, aqueles que não o conseguiram ficarão tão agradecidos que vão transformá-la numa jaula para você. Aqueles que escolhem falsificar suas próprias memórias – que anseiam por uma terra-do-nunca de uma década de 60 que nunca aconteceu daquela maneira em primeiro lugar – insultam o Éden retroativo que eles idolatram.

Assim, nessa hora de hipocrisias de gelar as tripas a respeito de ícones supremos, espero que você agüente minhas próprias considerações por tempo suficiente para me deixar dizer que os Beatles foram com certeza muitíssimo mais que um grupo de quatro músicos talentosos que podem muito bem ter sido os melhores de sua geração. Os Beatles foram acima de tudo um momento.

Mas a geração deles não foi a única geração na história, e insistir em manter a brasa daqueles sonhos acesa de qualquer maneira, com a esperança de que a ela voltará de alguma forma a arder novamente nos anos 80, é uma busca tão fútil quanto tentar transformar as letras de Lennon em poesia. É por aquele momento – não para o homem John Lennon – que você está de luto, se é que você está de luto. Em última instância, você está de luto por si mesmo.

Lembra-se daquele outro sujeito, um velho amigo deles, que disse uma vez, "Não siga líderes"?(1) Bem, ele estava certo. Mas as mesmas pessoas que pegaram essas palavras e as transformaram em bandeiras estavam violando o slogan que endossavam. E continuam fazendo isso até hoje. Os Beatles de fato comandaram, mas eles fizeram isso com uma piscadela de canto de olho. Eles podem ter sido mais famosos que Jesus, mas não creio que quisessem ser a religião mundial. Isso teria barateado e tornado cafona o que era especial e maravilhoso a respeito deles. John Lennon não queria isso, de outra forma não teria se retirado por toda a segunda metade dos anos 70. O que aconteceu na noite de segunda-feira foi só a extensão mais extrema de todas as forças que o levaram a se comportar daquele jeito.

Em alguma das suas últimas entrevistas antes de morrer, ele dissera, "O que eu percebi nesses cinco anos longe de tudo é que, quando eu disse que o sonho havia terminado, fiz uma separação física dos Beatles. Mas mentalmente ainda tem essa coisa enorme nas minhas costas, que é o que as pessoas esperam de mim". E também: "Nós éramos os bacanas dos anos 60. Mas o mundo não é mais como nos anos 60. O mundo todo mudou". E: "Produza seu próprio sonho. É bem possível fazer qualquer coisa... o desconhecido é que é o lance. E ter medo disso é o que leva todo mundo a se arrastar por aí caçando sonhos, ilusões".

Adeus, baby, e amém.

- Los Angeles Times, 11 de dezembro de 1980

1- "Don’t follow leaders/ and watch the parking meters”; trecho da música "Subterranean Homesick Blues", de Bob Dylan. (N. T.)

Obituário de Lennon por Lester Bangs, publicado no L.A. Times e incluído na coletânea de textos Reações Psicóticas, lançada em 1988. O itálico é de minha parte.



 


é isso aí, bicho

 

18.9.11


[10:06 PM]


“(...) Solitária e desamparada é a secretariazinha Delphine (Marie Rivière). Os adjetivos não me ajudam muito e não a ajudaram nada a ela. Delphine, desde que uma amiga lhe pôs os cornos e, em vez de passar férias com ela, resolveu passar férias com o namorado, na Grécia, se é solitária e desamparada, é chata como as coisas chatas. Como construir um filme sobre uma protagonista que não é bonita nem simpática e nos melhores momentos apenas nos faz uma certa pena? Como construir um filme com uma protagonista que chora baba e ranho porque queria passar férias em boa companhia, não o consegue e chateia de morte toda a gente que não tem culpa nenhuma disso? Como construir um filme sobre uma protagonista que não diz nada de particularmente interessante e se limita a desbobinar lugares comuns sobre astrologia, relações humanas, solidão e amor e a falar, falar, falar, sem que da boca dela saia uma só frase que retenha a nossa atenção?
Já não me lembro quem, comparou-a a uma personagem de Simone Weil, insignificante e pobre, mas à procura de Deus. Eu penso mais no que Péguy escreveu sobre a Santa Teresinha do Menino Jesus, quando pôs Deus a dizer aos anjos qualquer coisa como isto: “Julgam que para fazer santos preciso de gente muito especial? Vou pegar uma mulher parvíssima, limitadíssima, possidoníssima e, com essa matéria, vou fazer a santa que vos há-de espantar a todos.” Rohmer pegou em Marie Rivière e fez essa Delphine, mais irritante que todas as burguesas dele (e, meu Deus, como ele sabe fazer burguesas irritantes!) e construiu a personagem que é aquela que mais me espanta em toda a história do cinema. Porque, sem ponta por onde se lhe pegue, sem ponta que se nos pegue, não conseguimos despegar os olhos dela, sentindo, contra a personagem e contra a atriz, que dali vai acontecer qualquer coisa de espantoso. Mas Rohmer é o último dos cineastas que sabe que o essencial, no cinema, não é da ordem da linguagem, mas da ordem do ontológico. E todas as paixões de Rohmer, de Hitchcock a Mizoguchi, de Murnau a Rossellini, pegaram em Delphine e a levaram de Cherbourg para Biarritz e de Biarritz para Saint-Jean-de-Luz, para transfigurar à luz do raio verde. 1986 foi o ano.

Eu nunca vi o raio verde. Ouvi dizer que Rohmer, que filmou Le rayon vert em 16 milímetros, câmera à mão e sem qualquer script prévio, gastou metade do pequeníssimo orçamento que teve a mandar segundas e terceiras equipas do filme para todos os pontos da costa francesa, a fim de filmar o raio verde. Vi o filme dezenas de vezes e, seja ou não seja daltônico, nunca consegui ver o raio verde que Delphine viu no fim. Há um sol redondíssimo e amarelíssimo, há um mar todo azul, mas verde eu não vi. Mas acredito que Delphine viu o raio verde e que, a partir desse plano, plano final do filme, outra Delphine existiu e uma espantosa história de amor começou. Se não é este o milagre do cinema, não sei nem o que é milagre nem o que é cinema.”

João Bénard da Costa sobre O Raio Verde, de Eric Rohmer (1986).



 


é isso aí, bicho

 

16.9.11


[1:28 AM]


Êxtase completo a sequência de perseguição e tiroteio no parque de diversões em Casa de Bambu, Samuel Fuller num cinemascope extraordinário em 1955, no Japão. Quando eu fizer um filme tudo o que quero é enquadrar como o homem. Olha o equilíbrio dessa composição, que coisa maravilhosa (o homem no centro do mundo - do quadro). Tóquio, Yokohama, cores, nomes, formas, máscaras, máfia, uma vibração pulsante dos corpos dentro do plano, deslocando a ação de uma ponta a outra e arrastando meu olhar feito um ímã, sem perder a ternura jamais. O filme começa com uma trama policial que se desenvolve progressivamente até mergulhar na relação entre um espião americano e uma mulher japonesa, um encontro de culturas que desfaz a noção de choque e alivia temporariamente as tensões em jogo. É admirável a capacidade de interromper um fluxo de força viril e abrir espaço para que dois personagens de mundos opostos se descubram através de um cotidiano palpável, de pequenos gestos, como o simples ato de dividir o mesmo café da manhã cada um à sua maneira (ela, no chão; ele, na banheira). E isso para um ex-soldado de guerra! Para Fuller, a violência é um enunciado que se manifesta por meio de vários discursos: de morte, de paixões, de medo, de instinto, de vingança. A violência do assassino é a mesma daquele que ama desesperadamente. Não há como controlar algo que é puro instinto, plena desrazão. Daí o espaço concedido tanto para uma perseguição inflamável como a do parque como para momentos de cumplicidade entre amantes, como o café da manhã. O ritmo incessante, com cortes bruscos, alguns até dentro da mesma cena, mantém as retinas intactas, mas o recado já foi dado: a violência é uma condenação da qual ninguém escapa, e sem ela – pelo menos nos filmes de Fuller – seria impossível viver.



 


é isso aí, bicho

 



[1:23 AM]

Singularidades de uma rapariga loura





 


é isso aí, bicho

 

15.9.11


[12:21 PM]


- Uma das principais questões envolvendo Pacific, de Marcelo Pedroso, diz respeito aos limites da própria linguagem. Em tempos de descentralização tecnológica e portabilidade digital, para onde vai o cinema? Se nesta virada de século as sociedades atravessam mudanças que colocam em risco modelos pré-estabelecidos e desenham novas configurações de interação social, é natural que o cinema também anseie por maneiras alternativas de se realizar. O 3D, por exemplo, é uma delas: o último suspiro da grande indústria. E o documentário de Marcelo é outra, diametralmente oposta, pois se apropria de imagens produzidas por várias pessoas comuns para compor um tecido em que, a princípio, diversos olhares convergem para o mesmo. Digo isso porque é difícil, em função do controle de seleção e montagem, fugir de uma visão que questione as ações dos passageiros do transatlântico que ruma para Fernando de Noronha.

A exposição à qual eles se submetem traz à tona vestígios do comportamento de uma classe média ascendente, deslumbrada tanto com a presença em um cruzeiro como com a própria capacidade de registrar tudo em vídeo. Há aí uma questão ética importante, sobre como se lançar sobre esses filmes caseiros sem provocar um julgamento, sem condicionar o olhar do espectador a vícios fáceis, questão esta que o filme enfrenta e sai vitorioso ao sobrepujar o afeto por eles (aproximando-os de nós, ao injetar complexidade em suas construções) às tentativas de um mero reducionismo de classe. Suas várias camadas e possibilidades de leitura apontam para desdobramentos que dificultam um diagnóstico simplista, indo muito além de um mero veículo voyeurista. E posso dizer que entendi melhor a frase de Jean-Claude Bernadet (“o filme toca pontos sensíveis da contemporaneidade”) quando minha mãe, que não é muito íntima de aparelhos digitais, voltou da festa de aniversário da minha bisavó dizendo: “A festa foi ótima, você perdeu. Mas não tem problema, eu filmei tudo”.

- Apesar das afetações e de alguns maneirismos típicos de quem está começando, me surpreendeu a adaptação para a TV que Lars von Trier fez do roteiro deixado por Carl T. Dreyer para Medeia, uma das mais atraentes personagens da mitologia grega. Aqui, Medeia é transformada em uma feiticeira, uma bruxa que só veste preto e vive como uma sombra a ameaçar a cidade com seu silêncio e seus poucos gestos. Afora a vontade de querer fazer de todos os planos os mais bonitos já filmados, numa ânsia de grandiosidade e auto-importância que termina por enfraquecer o tom direto da narrativa, o filme constrói uma atmosfera densa de ar rarefeito sustentando com firmeza tal paradoxo, como mostra a cena em que a mãe prende seus filhos à forca. Mesmo longe de ser um grande filme, com alguns jogos de luz e sombra que evocam o expressionismo, ao menos é melhor que Melancolia, a bomba atômica que está em cartaz nos cinemas. Para este não há salvação. Por mais que a história tenha lá seu interesse, não dá pra valorizar um filme onde a câmera é tratada como se fosse um pandeiro.

- Em literatura, há um ditado que diz que é fácil escrever difícil; difícil é escrever fácil. Um dos grandes prosadores norte-americanos da segunda metade do século 20, Kurt Vonnegut escreveu uma dezena de livros, e a grande maioria deles é pautada por uma carga universal de humanismo, onde a afecção é mais importante que a ação. Não raro suas páginas trazem um sopro de melancolia próprio dos homens que apresentam uma lucidez aguda sobre o momento em que vivem. Talvez por serem dotados de maior clareza no olhar, tais indivíduos se inclinam ao isolamento e assim alcançam um grau de reflexão e expressão que os diferenciam daqueles que escrevem para se distrair, e não por necessidade. Vonnegut, que lutou na 2ª Guerra Mundial e vivenciou dias de Vietnã, sempre com uma posição crítica diante das intervenções do governo de seu país, frequentemente disfarça um sentimento de descrença por meio do humor, o qual utiliza como arma para tecer comentários ácidos sobre a humanidade, a política e o cotidiano dos homens.

Terminei recentemente Café-da-Manhã dos Campeões, que traz um dos personagens mais tristes da bibliografia do sujeito, um homem que vai progressivamente enlouquecendo à medida que se percebe um estranho em meio ao absurdo. Meu preferido continua sendo Matadouro 5, mas em Breakfast sua escrita sintética, despida de grandes sofisticações, ainda apresenta momentos de brilhantismo que tornam sua caneta única. Como este, por exemplo: “Concordo com Kilgore Trout a respeito de romances realistas e seus acúmulos de detalhes minuciosos. No romance de Trout, O banco de memórias pangaláctico, o herói está numa nave espacial de trezentos e vinte quilômetros de comprimento e cem quilômetros de diâmetro. Ele pega um romance realista da biblioteca de sua vizinhança. Lê cerca de sessenta páginas e então devolve o livro. A bibliotecária pergunta por que ele não gostou do livro, e ele responde: ‘Eu já conheço os seres humanos’. E assim por diante”.



 


é isso aí, bicho

 

12.9.11


[1:34 AM]


Noite de Estreia, John Cassavetes, 1977

"Há duas afirmações do amor. Inicialmente, quando o amante encontra o outro, há afirmação imediata (psicologicamente: deslumbramento, entusiasmo, exaltação, louca projeção de um futuro pleno: sou devorado pelo desejo, pelo impulso de ser feliz): digo sim a tudo (cegando-me). Em seguida vem um longo túnel: meu primeiro sim é corroído por dúvidas, o valor amoroso é incessantemente ameaçado de depreciação: é o momento da paixão triste, do surgimento do ressentimento e da oblação. Desse túnel, entretanto, posso sair; posso ‘superar’, sem liquidar; o que afirmei uma primeira vez, posso novamente afirmar, sem repetir, pois, agora, o que afirmo é a afirmação, não sua contingência: afirmo o primeiro encontro na sua diferença, quero seu retorno, não sua repetição. Digo ao outro (antigo ou novo): Recomecemos."

"Tento recordar teu rosto, teu nome. Curioso como às vezes nos escapam os traços da pessoa amada. Situo-te num passado já distante. Não te imagino num presente. De ti resta-me o que foste comigo. E foste-me ternura e descoberta do meu corpo, de minhas mãos até então inábeis que ensinaste a acariciar teus cabelos, a sentir teu corpo; e ainda descoberta de que a minha voz tinha um sentido para além de sons mais ou menos indistintos e vagos."

Fragmentos de um Discurso Amoroso, Roland Barthes, 1977



 


é isso aí, bicho

 

8.9.11


[12:14 AM]


Não há como não se entusiasmar com o cinema que vem sendo produzido no cenário contemporâneo brasileiro. É tempo de mudanças. São muitas as ideias, os conceitos e as alternativas – basta mergulhar um pouco mais fundo para descortinar um mundo por enquanto paralelo, em que a pulsão pela produção de imagens em movimento vem por todos os lados do país. Ainda não há um marco representativo, um filme que sintetize o momento, e sinceramente acho que com esse descontrole criativo dificilmente teremos um. Mas também não precisamos. Foi-se o tempo em que dependíamos de um bandido para nos recuperar do atraso. Em meio a esse turbilhão de imagens, é sintomático que vários desses novos filmes se percam na tentativa de atravessar diversas estruturas e emergir de todas elas com algo novo. O período que se anuncia é o da descoberta, e com ele a tranqüilizadora sensação de que finalmente voltamos a experimentar.
Nesse sentido, A Alegria pode ser considerado um filme símbolo da nova maneira como se vem fazendo cinema no Brasil. Negando a limitação genérica a todo instante, recusando-se a ser aprisionado em um segmento reducionista, o filme mostra jovens que, sentindo a potência que irradia de dentro deles e da própria cidade em que vivem, se voltam contra o comodismo e partem ao encontro da ação. No meio do caminho lidam com seres fantásticos, dramas familiares, sentimentos de inadequação, revoltas estudantis, descobertas pessoais, enfim, uma amálgama de elementos que representam o próprio passeio da narrativa por vários gêneros e seu desprendimento para com tais enquadramentos. É um filme de riscos, que recorta diversas molduras e não se restringe a nenhuma delas. É várias coisas ao mesmo tempo – e por isso não é coisa nenhuma.
A forma como se propõe a encontrar um caminho alternativo para refletir sobre as relações entre a juventude e o espaço no qual ela transita resultou no indesejável paradoxo, já que a pretensão em se projetar sem se ater acaba por atingir a superficialidade de uma bala sem gosto. As atuações, por exemplo, que negam os recursos naturalistas, impedem um diálogo mais amplo entre espectador e personagens simplesmente por não nos permitir uma aproximação mais direta. A total recusa às concessões faz com que o filme encontre o isolamento, a distância. Os conceitos, portanto, são animadores, mas a execução ainda não encontrou ressonância imagética para tantas boas ideias.
Felipe Bragança, um dos diretores, disse em um bate-papo no qual eu estava presente que a intenção era trabalhar a atuação no espaço entre a virulência do discurso e a apatia da ação, investigar o que há entre os dois pólos. É uma busca que revela o interesse pela ousadia, mas que termina por soar inexpressiva e vazia, visto a sensação de desencontro que deixa ao final.
Há um longo caminho entre os conceitos e as imagens que se derramam sobre a tela, e as curvas sinuosas propensas ao desvio fazem com que poucos filmes da nova safra, até agora, obtenham êxito na travessia sem se dispersar. Sendo assim, o filme de Felipe e Marina Meliande soa como o reflexo de toda uma geração, com as devidas exceções que confirmam a regra.
A Alegria é o segundo tomo de uma trilogia intitulada Coração no Fogo, e é precedido por A Fuga da Mulher Gorila e sucedido por Desassossego, ambos com propostas igualmente ambiciosas nos rumos à articulação de uma guinada estética no cinema brasileiro, porém com resultados de força ainda mais diluída, visto a radicalidade com que encaram a ideia de não pertencimento a uma compreensão. É um dos retratos possíveis de uma geração que lida com o desespero por encontrar caminho próprio em meio a cargas quase intolerantes de informação e acesso, vivendo um tempo onde não precisamos apenas nos esquivar de qualquer tipo de aprisionamento, mas também nos questionar, a todo instante, como proceder diante de tamanha possibilidade de libertação.



 


é isso aí, bicho

 

1.9.11


[12:51 AM]


Sobre o filme do Nelson: olhar direto, sem sobras. Pela objetividade com que constrói a narrativa, sem recorrer a exotismos ou soluções rebuscadas, primando sempre por um alto poder de síntese visual, era ele o sujeito mais adequado para realizar a adaptação para o cinema da obra igualmente concisa de Graciliano Ramos. Com um olhar destes, você precisa de mais o quê? Só as expressões por si só encerram um oceano de questões. A tentação mais fácil seria render-se a um painel vitimizador, esgotando as potências do universo retratado por meio de estratégias superficiais que buscam a compaixão do espectador. Mas é bom lembrar que Nelson veio antes de todos, e a ele não interessa o simples juízo de valor, a análise social rasa e de fácil assimilação.

O que expulsa as pessoas do sertão é a carência de perspectivas, a terra que não dá, a falta de água e de recursos primordiais a uma existência digna. Tudo falta – exceto luz. E é a luz que impulsiona os nordestinos a seguir em busca de uma sombra que nunca chega. A luz cegante, que se derrama sobre os vastos descampados do sertão, rachando o solo e dizimando todas as possíveis formas de vida. A luz em Vidas Secas é cruel, cortante, porque real. O branco inunda a tela, e ao castigar os personagens faz com que nossos olhos permaneçam abertos o tempo inteiro, para que possamos, sem precisar recorrer a artifícios externos, nos aproximar silenciosamente daquela realidade, do ar quente, do suor que não cessa, da luz que não sossega. Em Vidas Secas o sertão nos atravessa.




 


é isso aí, bicho

 

 


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