qualquer coisa
num verso intitulado mal secreto
 

15.5.07


[6:26 PM]

MAIO: 10 filmes


Otelo
(idem, Orson Welles /1952)
Após a leitura da tragédia inglesa em sala de aula, o professor de filosofia resolveu exibir o filme de Orson Welles para a turma, às nove da manhã, sob um calor infernal que aparentemente só eu senti, e que influenciou diretamente em minha avaliação sobre a obra. O texto original de Shakespeare é considerado um dos mais acessíveis de sua extensa produção (ao contrário de Hamlet, por exemplo) e o nome de Welles soa forte onde quer que esteja rabiscado. O resultado, portanto, passa longe do eixo negativo, mas ressalvas precisam ser feitas, principalmente em se tratando da equivocada montagem. Em uma tragédia, há toda uma preocupação em desenvolver a dramaticidade do enredo, ancorada em diálogos vigorosos e engendrada a favor de uma atmosfera densa, onde meros detalhes passam a ter importância vital. Mas a escolha dos planos pequenos torna clara a impressão de seqüências mutiladas, inseridas erroneamente em meio às falas de outros personagens, extraindo do texto a sedução evocada pelo dramaturgo inglês. Os interesses se chocam: enquanto o roteiro flui de maneira a compor um painel emocional sóbrio e elegante sobre interesses hierárquicos opostos, a montagem opta por um dinamismo que descaracteriza todos os propósitos concebidos pelo texto. O destaque mesmo fica por conta da iluminação, uma preocupação recorrente nos filmes do cineasta, que atinge níveis de plenitude em várias passagens, incluindo a bonita seqüência inicial.

O Rei da Comédia
(The King of Comedy, Martin Scorsese /1982)
Dois anos depois de realizar um dos melhores filmes que pude assistir, Scorsese chamou novamente o fella De Niro e juntou Jerry Lewis para a realização de uma comédia, que ainda contava com a sumida Sandra Bernhard no elenco. Em seus momentos de inspiração, o cara faz cinema como poucos, e O Rei da Comédia mostra o senhor diretor que Scorsese é. Há o domínio completo da câmera, e o texto de Paul D. Zimmerman flui de maneira absolutamente natural, como se ele apenas tivesse ligado seu instrumento de trabalho e filmado seus interlocutores em ação. É sabido que para chegar a esse ponto o trabalho é árduo, e só o talento é capaz de atingi-lo, elemento que sobra nos créditos deste filme. De Niro está estupendo, um dos grandes momentos de sua grande carreira, e compõe com extrema destreza um homem iludido por suas ambições - como já o fizera de maneira magnífica anteriormente, em outras incursões de Scorsese no universo marginal dos homens perdidos e sozinhos buscando a realização pessoal (Travis Bickle de Taxi Driver e Jake La Motta de Touro Indomável). Chega a soar irônico, hoje, 25 anos depois, por insinuar de maneira perversa o que as pessoas são capazes de fazer por minutos de fama, e em tempos de Big Brother, tudo é possível para chegar à televisão. Muito precisa ser dito, lido e principalmente visto, por isso fico por aqui recomendando a você, leitor solitário deste espaço, que assista ainda hoje esta pérola negra. Não mudará sua vida, não fará com que sua conta bancária infle, não o livrará do dentista quinta-feira e muito menos daquela menina chata que não pára de ligar; mas você saberá, certamente, o que é um grande filme (olha a responsa...).

Match Point (idem, Woody Allen /2005)
A revisão apenas confirma que o zum-zum-zum formado ao redor de Woody Allen após este filme não só é válido como também pertinente, sendo esta sua mais significativa experiência cinematográfica nos últimos cinco anos. Não me decidi ainda se as qualidades estão nos elementos que distinguem este filme dos demais do cineasta, ou se elas se dão justamente por serem encontradas numa obra do neurótico preferido da galera. O certo é que, por mais que Crimes e Pecados seja um cinema de primeira, foi apenas a folha rascunhada que Allen usou para compor um mosaico das relações na sociedade londrina atual, com Scarlett Johansson incrivelmente linda fumando às veras, e com um texto afiadíssimo que há anos não o víamos escrever. A julgar por Scoop, seu último longa exibido comercialmente (também com Scarlett protagonizando), Match Point foi apenas um suspiro fora do comum, daqueles que duram 124 minutos e que não deviam ser expirados de maneira alguma.

Sunshine – Alerta Solar (Sunshine, Danny Boyle /2007)
Lars von Trier está em Cannes, novamente, e dessa vez assina um segmento de Chacun Son Cinéma, filme onde o foco é o cinema sob a ótica de seus realizadores. Seu episódio narra o desejo íntimo que todos nós, amantes da sétima arte, temos quando estamos imersos no universo da sala escura: matar quem abre a boca durante o filme. No curta do dinamarquês, um espectador martela o vizinho de poltrona que não pára de falar durante a projeção. Esta digressão foi só pra deixar registrado que eu, meio que inconscientemente, quase levei o argumento de von Trier aos meios práticos durante a sessão de Sunshine, tamanha irritação que o bate papo entre duas meninas, durante 107 exatos minutos, me causou. Ah, se eu andasse armado... Enfim, é chato falar sobre um filme começando sobre seus deméritos, mas enumerar os problemas do último projeto de Danny Boyle não é tarefa das mais complicadas, já que as incoerências do roteiro (como assim um quinto tripulante?) prejudicam bastante o andamento da história e até comprometem o resultado final. Fica confirmada, também, a dificuldade que o cineasta possui para concluir seus projetos – a grande maioria de seus filmes desacelera e quase se suicida quando próximos do final, o exemplo mais emblemático talvez seja A Praia -, porém, é um filme que consegue conquistar por possuir pequenas qualidades. A música, que eleva o conteúdo de grande parte das cenas onde é executada, é muito bem inserida no contexto da trama. A explícita homenagem a Kubrick também é notável, assim como o projeto visual do Sol e do espaço em si. Mesmo previsível e de fácil esquecimento, não deixa de ser agradável, e certamente abraçará seu sucesso nas estantes das locadoras.

Os Pássaros (The Birds, Alfred Hitchcock /1963)
Precisa dizer que é um filmaço? Hitchcock não se prende a uma simples história sobre a fúria da natureza, e, mais uma vez, engendra o roteiro de maneira a desenvolver suas personagens a favor do tema que se propõe a discutir. A atmosfera do filme é agonizante, durante todo o tempo pressupõe-se a iminência de um ataque, e o final, inconcluso, com o argumento aberto, é um instigante convite a suposições das mais mirabolantes. Impossível esquecer de certas cenas espantosas, mesmo hoje, 45 anos depois, como aquela em que Tippi Hedren vê centenas de corvos repousando sobre o balanço da escola fuzilando-a com o olhar ou aquela onde a mulher é encontrada morta à porta de casa. Indispensável em qualquer coleção (inclusive na minha, quem se dispuser a me presentear, contate-me por e-mail).

Homem-Aranha III (Spider-Man III, Sam Raimi /2007)
Pra começo de conversa, não vejo as duas primeiras incursões do Aranha no cinema como grandes filmes e muito menos como obras-primas – são dois bons frutos de uma indústria gigante e pragmática, que dá tiros no próprio pé quando coloca o retorno financeiro em primeiro lugar (circunstância onipresente nos produtos que fabrica), pois nem sempre ele realmente acontece. A partir disso, não dá pra exigir outra coisa de um filme de aventura sobre um herói popularíssimo, cuja imagem vai além de barreiras raciais, sociais e geográficas, que não fosse um simples e mortal (por isso passível de equívocos) filme de aventura, daqueles para se ver com pessoas de todas as faixas etárias e muita pipoca voando em sua cabeça no cinema. A decepção veio, por grande parte da crítica, devido à cobrança exacerbada em cima de Sam Raimi para que repetisse o êxito que correspondeu ao volume dois, mas, ao contrário de grande parte dos detratores do filme, achei o novo capítulo da história bastante convincente e superior a 90% do que Hollywood lança por ano. Primeiro: é inconcebível manter de pé um roteiro de 140 minutos com apenas um vilão e boa parte da história já desenvolvida nos filmes anteriores, sem contar que nenhum deles tem cacife pra concorrer sozinho com a atenção sobre o Aranha (Venom se aproxima), só isso justifica o trio de algozes. Aliás, fui o único a perceber que, após tirar um peso das costas no filme anterior, Sam Raimi colocou sua diversão em primeiro plano? É inegável que as cenas musicais soam cansativas em dado momento, mas não é difícil imaginar o diretor sentado em sua cadeira, rindo, enquanto filma. A aproximação com a linguagem dos quadrinhos é cada vez mais explícita (repare nos closes quando os humanos e suas expressões faciais entram em cena e nos planos abertos filmando os vilões e o Aranha) e, mesmo contando com uma bandeira americana desnecessária e carente de maior elaboração nos minutos finais, Homem-Aranha III está longe de ser o desastre que preconizam por aí.

Entreatos (João Moreira Salles /2004)
Ao término de Entreatos, a constatação que me ocorreu com maior nitidez é a de que o ano de 2002, além de histórico no cenário político brasileiro, está a anos-luz da minha (talvez nossa) realidade atual. No ano em questão, eu presenciava meu 15º outono, era simpatizante de ideais marxistas, tinha uns dez centímetros a menos, além de ser três décadas mais ignorante e residente do interior de Minas Gerais. Do lado de lá, o PT sonhava em ocupar o posto mais importante do Palácio do Planalto, fazendo de Lula o primeiro presidente do povo eleito diretamente pelo povo. Minha tireóide foi meio cruel com meu crescimento, mas de resto, sou outro cara, e o PT outro partido. João Moreira Salles filmou o mês que antecedeu as eleições daquele ano, e em suas filmagens estão registrados momentos íntimos de vários líderes petistas (acessos hidrofóbicos ocorrem quando Silvio Pereira, Genoíno e Zé Dirceu aparecem em cena), do futuro presidente e sua família, de bastidores dos debates, de comícios e de programas eleitorais. O maior trunfo do cineasta é documentar todos esses momentos despido de maniqueísmos e sem fazer juízo de valor a respeito das personas filmadas, encarregando-as de escreverem seus próprios roteiros. Não chega a ser imprescindível, mas é interessante pelo painel político que apresenta e pelas interessantes passagens focalizadas por sua câmera. Bom mesmo seria a continuação, centrada no segundo mandato e após todos os escândalos de corrupção que permearam os quatro primeiros anos de Lula lá.

Felizes Juntos (Happy Together, Wong Kar-Wai /1997)
A velha fórmula da alternância de cores como metáfora para expressar o sentimento das personagens é adotada com sucesso pelo cineasta coreano, mesmo que por pouco tempo. Ambientado em grande parte na Argentina, o filme conta a história de um problemático casal gay, que vive uma relação intranqüila e vêm à América tentar recomeçar novamente. O ritmo ágil, com seqüências na maioria das vezes inacabadas (a impressão que dá é de que todos os mecanismos técnicos estão em convergência com a situação da dupla central, por isso Kar-Wai quis estabelecer um elo entre os dois e todas as características mecânicas que permitem a história ser contada), os ângulos inusitados, meio tortos e fora de foco, a fotografia por vezes granulada e a montagem frenética resumem bem o relacionamento do casal. Ao som de Astor Piazzolla, Caetano Veloso e Frank Zappa, Kar-Wai levou o prêmio de melhor direção em Cannes por este filme.

Pacto Sinistro (Stranger's on a Train, Alfred Hitchcock /1951)
O início pressupõe uma trama encadeada sob a atmosfera do humor negro, mas à medida que os enlaces começam a acontecer, o lado natural de Hitchcock aparece e mostra o suspense que está por vir. É impressionante a capacidade que o inglês possui para armar suas histórias em torno de personagens falsamente culpados, também conhecidos como “homens-errados”. Aqui, como em Intriga Internacional, o sujeito é culpado de um crime que não cometeu, e para provar sua inocência conta com todos que o cercam. Em grande forma, o mestre do suspense constrói uma trama absolutamente envolvente, com um roteiro bem aparado e fugindo da obviedade em todos os momentos (a angulação com que fotografa é de primeira qualidade e atual até hoje – preste atenção na partida de tênis), além de contar, já ao final, com uma apoteose de acontecimentos capazes de sintetizar visualmente toda sua maestria. A seqüência do carrossel, já clássica, é uma pequena amostra do porquê desta ser outra obra-prima de Hitchcock. Não dá pra perder.

Lavoura Arcaica (Luiz Fernando Carvalho /2001)
Em 98, Aluisio Abranches resolveu adaptar para o cinema um romance de Raduan Nassar chamado Um Copo de Cólera, com Alexandre Borges e Júlia Lemmertz nos papéis principais. A adaptação foi tão literal a ponto de sugerir a simples transposição de frases do livro, que usa uma linguagem de alta formalidade, para o roteiro, o que, de fato, é um grande erro – talvez tenha sido o grande assassínio de seu fracassado filme. E aí, três anos depois, Luiz Fernando Carvalho, diretor de novelas da TV Globo, aparece com outra adaptação de Raduan, uma grande obra sobre o filho pródigo e atormentado que retorna à casa após um período de reclusão. Todo o acabamento cinematográfico é de um nível que raras vezes vemos no Brasil – o arrojamento visual, fruto de anos de pesquisa, apresenta imagens impactantes, fotogramas belíssimos e ares de produções de primeiro mundo. Só que Luiz Fernando parece não ter visto o filme de Aluisio (que não merece ser visto, e sim extinto), onde ele peca pela verborragia e pela total falta de compreensão de seu público e, principalmente, pelo desconhecimento das fronteiras entre o teatro e o cinema. Não dá pra filmar uma peça e simplesmente lançá-la na telona, as concepções de criação são bastante distintas, tratam-se de dois universos diferentes que não podem (e nem devem) ser confundidos. E Lavoura Arcaica, o premiado filme de Luiz Fernando, aponta justamente para os horizontes teatrais, onde o tratamento dado aos diálogos é limitado aos palcos, talvez por isso seja complicado estabelecer uma relação de maior intimidade entre o filme e o espectador, já que nem todos possuem o conhecimento e a noção da fala quando filmada sob a perspectiva da dramaturgia, e o ato relapso do cineasta também fez com que seu filme sofresse um eclipse de seu real valor. É um cinema vigoroso, forte e emblemático, do tipo que faz falta no cenário atual do Brasil, mesmo sendo ainda um bebê, que neste caso nasceu prematuro e com problemas a serem corrigidos futuramente.

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