qualquer coisa
num verso intitulado mal secreto
 

28.3.11


[2:01 AM]



- Elizabeth Taylor está morta. Lembro do mecânico de Crash, livro de J. G. Ballard, cujo sonho era morrer numa colisão com o carro que a atriz ocupava. Cair nos braços de Liz era um sonho permitido a muitos que cresceram acompanhando os desenlaces de sua movimentada vida através das lentes de Hollywood. Quando jovem era linda, mas nunca esteve entre as prediletas da casa. Talvez em O Pecado de Todos Nós, de John Huston, onde vive a vulgar esposa do militar interpretado por Marlon Brando, tenha se aproximado um pouco. O filme não resolve uma série de questões e termina por ser bem problemático (o desfecho, com a câmera histérica, apenas confirma a má impressão), mas é saboroso vê-la catando amoras antes de trair o marido ou provocando Brando enquanto tira a roupa no meio da sala.
- Em Cópia Fiel, Abbas Kiarostami cria performances com os corpos de seus dois atores. Questiona a representação, coloca fogo nos originais e compõe os planos mais lindos de Juliette Binoche desde... Horas de Verão? Por aí. O primeiro filme no exílio do cineasta iraniano segue a tônica de seus anteriores em relação a encenação: tudo é simples, direto, sem excessos. Mas, como lembra o personagem masculino em determinado momento, não há nada simples em ser simples. Kiarostami desenvolve um jogo cênico que começa com uma provocação e vai caminhando sutilmente em direção a uma incorporação do casal acerca das questões levantadas no início da narrativa. Eles passam a viver aquilo. Uma construção menos equilibrada não seria capaz de dar conta de forma convincente dos pontos levantados pela dualidade de posições, mas o roteiro é amarrado com tanta habilidade que nos conduz a um instigante jogo de ideias onde até o silêncio carrega sua parcela de inquietação.
- Voltando a Marlon Brando, não concordo com os que dizem que sua melhor interpretação está em Uma Rua Chamada Pecado, aquele filme que poderia ser sobre a Farme de Amoedo. O mesmo Elia Kazan havia arrancado do cara, em Sindicato de Ladrões, uma atuação mais pontual, precisa, explorando suas potências de acordo com as necessidades da cena. Em Uma Rua... Brando sobe o tom em vários momentos, explodindo numa implacável e exagerada fúria que acaba por evidenciar as pretensões teatrais do texto de Tennessee Williams e tornar seu personagem levemente afetado. Não deixa de ser espetacular, claro, mesmo nos momentos em que poderia segurar a onda de violência que o opõe à personagem de Vivien Leigh (também um degrau acima), mas penso que uma singela jarra de suco de maracujá teria transformado as atuações do filme em definitivas, mesmo já estando eternizadas.
- Uma visita aos dois principais filmes dirigidos por John Frankenheimer na década de sessenta é suficiente para comprovar que não há - pelo menos eu desconheço - atestado moral mais sombrio da sociedade norte-americana do período do que o visto em O Segundo Rosto e Sob o Domínio do Mal. Dois petardos cinematográficos poderosíssimos. O primeiro vi ano passado, assim que lançado pela Lume, e é praticamente a história do Mr. Jones de Ballad of a Thin Man, canção do Dylan, que sente algo acontecendo mas não sabe definir o que é. O vislumbre de liberdade da costa oeste logo se desnuda num dos mais aterrorizantes dramas psicológicos já filmados. O segundo, protagonizado por Frank Sinatra e Janet Leigh, confirma a desesperança do cineasta com as instituições de seu país e mostra uma sociedade onde ninguém é confiável e qualquer movimento traz o perigo consigo. Ambos com desfechos pessimistas e corajosos, mostram um país se corroendo por dentro enquanto seus habitantes agonizam em corredores escuros e planos fechados.
- Perdi as sessões de Metrópolis no Municipal com orquestra por puro vacilo. Não ouvi uma reclamação sequer, só elogios. Louis Lumière, citado em O Desprezo, dizia que o cinema é uma arte sem futuro. A julgar pelo que me disseram a respeito da qualidade dessas exibições, creio que um dos possíveis futuros do cinema está no passado (e não no 3D).



 


é isso aí, bicho

 

25.3.11


[1:35 PM]





 


é isso aí, bicho

 

18.3.11


[1:25 PM]

“Um dia você ficará cego, como eu. Estará sentado num lugar qualquer, pequeno ponto perdido no nada, para sempre, no escuro, como eu. Um dia você dirá, estou cansado, vou me sentar, e sentará. Então você dirá, tenho fome, vou me levantar e conseguir o que comer. Mas você não levantará. E você dirá, fiz mal em sentar, mas já que sentei, ficarei sentado mais um pouco, depois levanto e busco o que comer. Mas você não levantará e nem conseguirá o que comer. Ficará um tempo olhando a parede, então você dirá, vou fechar os olhos, cochilar talvez, depois vou me sentir melhor, e você os fechará. E quando reabrir os olhos, não haverá mais parede. Estará rodeado pelo vazio do infinito, nem todos os mortos de todos os tempos, ainda que ressuscitassem, o preencheriam, e então você será como um pedregulho perdido na estepe.”


Fim de partida
, Samuel Beckett, 1956.



 


é isso aí, bicho

 

14.3.11


[2:09 AM]

Uma das principais conquistas do cinema francês dos anos 60 foi o rompimento com a padronização formal que vigorava nas narrativas da época, a fim de garantir maior autenticidade às ideias contidas nos filmes. Os franceses embaralharam as cartas, pois sabiam que só um novo corpo seria capaz de sustentar novos pensamentos e posturas. Lembremos: o mundo estava em ebulição. Era impossível tratar dos desafios que se desenhavam à frente com o mesmo tom de voz, as mesmas roupas e a sisudez daqueles tempos que logo ficariam para trás. A nova onda bateu com força nos quatro cantos do mundo, e quando pouco depois aportou nos bueiros da Boca do Lixo paulista, Sganzerla sentenciou: “O novo cinema deverá ser imoral na forma, para ganhar coerência nas ideias”.

De lá para cá muita água passou por debaixo da rampa, e como eu não perco a oportunidade de fazer uma piada ruim, posso dizer que essa foi uma onda que Bruna Surfistinha não conseguiu dropar. Porque o diretor, Marcus Baldini, desconsidera completamente uma das principais conquistas que aconteceram a partir da marolinha francesa, e isso fica evidente observando um dado básico de seu filme: há um descompasso abissal entre o atrevimento e a ousadia que pontuam a história da menina de família que vira prostituta e o modo careta como essa história é contada. Soa tão convincente quanto uma beata dizendo sacanagens no meio da madrugada (quando todos sabemos que elas dormem cedo). Um discurso que carrega tintas de transgressão em seu idealismo juvenil não funciona quando praticamente anulado por vícios de teledramaturgia, com cenas didáticas (“qual nota você me daria?”) e uso apelativo da trilha sonora.

Aliás, um sacrilégio usar a melhor música do Velvet Underground e um hino de Bob Dylan de forma tão superficial, meramente ilustrativa, à maneira de Cameron Crowe em seus piores momentos. O único acerto entre os tantos nomes que figuram na trilha pertence aos Zombies, cuja “Time of the Season” cai como uma luva de látex na sequência de abertura.
A questão que me vem à mente é uma extensão de uma das perguntas feitas pelo Inácio Araújo em seu blog: o cinema brasileiro que visa o milhão de espectadores conseguirá se emancipar do formato narrativo imposto pelas novelas da Globo? Penso ser necessário que filmes de grande projeção aqueçam o mercado nacional, até para estimular produções menores e mais inventivas, corajosas, mas me entristece pensar que o cinema que quebra recordes a cada fim de semana seja pautado pelo comodismo e pelo medo de correr perigo, quando este é o real barato da coisa. Não peço um novo Viver a Vida, obra-prima sobre prostituição feita lá nos tempos da nova onda, onde o travelling era realizado numa cadeira de rodas. Mas penso que deve haver uma alternativa viável, uma força que permita limar o excesso de pudor e auto-controle recorrente nos manuais e encoraje o pulo no abismo, de olhos bem fechados, nem que seja pra quebrar as duas pernas e fazer com que a dita cadeira volte a ser funcional para o fortalecimento artístico dos nossos filmes.

E a Deborah Secco tá tão gostosa que fica até sem graça.



 


é isso aí, bicho

 

12.3.11


[7:02 PM]


Certa vez contei a uma amiga os meus planos de escrever um roteiro sobre a história de uma mulher que, insatisfeita com as constantes decepções vividas no dia-a-dia, resolve devolver para o mundo através de ações pequenas as pancadas que recebeu durante toda a vida. Ela me questionou: “Mas qual a motivação dela? Você precisa ser mais claro”. Não lembro exatamente o que eu respondi, mas foi algo em torno de “mistério sempre há de pintar por aí”. Que é meu lema, aliás. Não senti necessidade, ao delinear as formas daquele texto na minha cabeça, de explicar quais seriam (e se de fato existiam) as razões para o enlouquecimento lento e gradual daquela mulher. Todas as mulheres vivem sob influência, e não precisa ser ginecologista ou uma delas para saber disso. Basta ligar em um daqueles dias errados por natureza.

Lembrei disso enquanto assistia Cada Um Vive Como Quer, filme de 1970 dirigido por Bob Rafelson. Nele, Jack Nicholson é um operário que sofre de insatisfação crônica, talvez pela relação conturbada com a família, ou pelo vazio que toma conta de seu relacionamento com uma garçonete sem ambições, ou por viver sempre à margem, desajustado, tentando se realocar em algum lugar e falhando sempre. Durante todo o filme, em nenhum momento vemos o local onde o personagem de Nicholson mora. O movimento é sua reza, o único lugar onde ele encontra tranqüilidade de espírito e acalma sua consciência. Tanto o movimento das estradas, dos carros, dos corpos, quanto o movimento da música. Por isso ele está sempre em fuga.
É interessante notar como uma composição tão complexa encontrou nas múltiplas variações expressivas de Jack Nicholson seu interlocutor ideal. Como caracterizar um personagem que não se sente à vontade com ninguém, em lugar algum, e mesmo assim transmite uma energia tão potente sobre o ambiente ao seu redor que acaba nos aproximando de uma compreensão que nem mesmo ele conhece?
O mesmo Jack, em Passageiro Profissão: Repórter, de Antonioni, invalida sua existência e assume o lugar de outro homem com o intuito, assim imaginamos, de começar uma nova vida. Mas por quê? O que o leva a fazer isso? Não é preciso explicar.


O mistério das coisas é o que mantém elas vivas.



 


é isso aí, bicho

 

 


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