Muita coisa a se dizer sobre o ano que passou. Como minha memória é uma ilha de edição com máquinas velhas e quebradas, já me habituei a confundir uma série de acontecimentos marcantes da década e lançá-los para os lugares mais esquisitos da minha história. 2004, por exemplo, é um ano do qual não me lembro nada. O que fiz em 2004? Em que casa morava? Foi nesse ano que comecei a sentir dores nas costas e quase fui reprovado na escola? Foi quando terminei meu namoro? Quando roubei o disco do Hendrix em que acabei descobrindo minha música preferida? Ou isso foi em 2005? Sei lá. Com a velocidade que as coisas se dão, muitas vezes os anos da década se atropelam na minha cabeça e eu fico perdido tocando banjo numa encruzilhada qualquer da memória.
Mas de 2009 eu vou me lembrar. É normal que os 365 dias de um ano compreendam uma amálgama de situações, sentimentos, decisões e descobertas, e que todas as conseqüências deixem de herança para os anos que chegam seqüelas que nem sempre cicatrizam – "ainda bem", grita lá de longe aquele abraço mais otimista.
Neste ano que acaba, vim morar num lugar que nunca, nem nos mais atrevidos e lisérgicos sonhos, seria capaz de me imaginar dormindo. Profissionalmente, embora ainda não exerça nenhuma atividade ligada diretamente à minha área de atuação, posso dizer que subi na vida: fui trabalhar no 2º andar de um estabelecimento. Por enquanto me dou por satisfeito, já que ainda não tenho idéia de qual será minha área de atuação. Sempre curti ser coadjuvante mesmo...
E 2009 ainda trouxe outros petiscos dos mais saborosos para um picareta esforçado como eu. Vi grandes ídolos de perto, seja tocando músicas que compõem a trilha sonora do meu dia-a-dia, seja numa conversa informal sobre um filme careta que não me agradou: valeu João Donato, Erasmo Carlos, Jorge Ben, Caetano Veloso, Eduardo Coutinho, Alessandra Negrini (não ia me esquecer de você), Agnès Varda, Julio Bressane e mais aqueles que já agradeci pessoalmente... Iggy Pop! Finalmente te vi, velho iguana, pedindo simpatia para o diabo pelado em pleno palco. Agora já posso ouvir meus discos dos Stooges mais tranquilo. Radiohead, Sonic Youth, Lafayette e os Tremedões e Kraftwerk também me agraciaram com boa música e um deleite visual nos shows que fizeram para mim em 2009.
Não posso deixar de agradecer a Kurt Vonnegut, H. L. Mencken, Julio Cortázar, Dostoievski (velho guerreiro, já estamos juntos novamente nesses dias que se seguem), Tolstoi, Oswald de Andrade, Rulfo, Joseph Conrad e Bob Dylan, pelas horas de boa leitura e companhia que me proporcionaram e que fazem parte daquelas cicatrizes que hei de ostentar com o maior orgulho. James Gray e Clint Eastwood, carregando a tradição norte-americana embaixo do braço, fizeram meus dois filmes preferidos do ano: Amantes e Gran Torino, respectivamente.
Às mulheres, sempre, todas elas, o meu tímido agradecimento. E você, que conheci agora, pode fazer de 2010 o nosso ano. É só querer.
Me despeço de 2009 com uma sensação de contentamento que poucas vezes dignei a algum ano. Dos outros mal me lembro onde estava. 2001 só existe por causa do beijo demoníaco entre dois aviões e as Torres Gêmeas. E irá sempre existir no filme do Kubrick. Meus amigos continuaram distantes, quase calados no acostamento da estrada que nos conecta, mas o silêncio deles vale por todo o estardalhaço dos fogos que começam a estourar agora pela janela.
Antes que a cerveja esquente, que as coisas apaguem e que a música abaixe, brindo ao ano que acabou com a música que, se por acaso existisse o cargo de presidente do mundo e se pelo mais afortunado dos acontecimentos eu o ocupasse, seria o hino de todo 1º de janeiro.
Que 2010 seja divertido e prazeroso para todos nós.
é isso aí,
bicho
13.12.09
[4:20 AM]
Um gato preto. O plano é tão rápido e esquecível que quase passa despercebido aos olhos de muita gente, mas Louis Malle antecipa os infortúnios futuros de seu protagonista masculino ao filmá-lo fitando um gato preto na janela do apartamento, logo após assassinar seu patrão. Sabe-se que, após a troca de olhares, alguma coisa irá acontecer. Ascensor Para o Cadafalso apresenta diversos dispositivos que prefiguram a ação e moldam o destino das personagens: o já citado felino na janela, a corda esquecida na varanda, o revólver no porta-luvas do carro, a máquina fotográfica e as fotos acusatórias, responsáveis por selar o destino do casal de amantes.
São artifícios que Hitchcock usou para amarrar as peças de suas tramas e que Malle, como bom observador que era, tratou de reprocessar em seu mais famoso filme. Traição, assassinato, falsa acusação, objetos esclarecedores... Ascensor Para o Cadafalso deve muito ao cinema do gorducho inglês, confessa fonte de inspiração da rapaziada da Nouvelle Vague.
E ainda há Jeanne Moreau, filmada com uma intimidade que nenhum outro diretor jamais conseguiu captar, nem mesmo Truffaut. Sublinhada pela envolvente trilha de Miles Davis, Jeanne anda desolada pelas ruas de Paris fazendo da calçada uma passarela de nuvens feita especialmente para ela. Nunca esteve tão bonita.