qualquer coisa
num verso intitulado mal secreto
 

31.10.08


[1:22 PM]

Ciente de que Marty McFly não vai além do poder criativo de uma mente saudosista e de que a manipulação do tempo é algo restrito aos livros de H.G. Wells, o Grupo Estação relançou essa semana, em sua maior sala, Sombras, o primeiro filme de John Cassavetes. É claro que a sensação de passar pela rua e ler o nome do filme nos letreiros da fachada nos remete imediatamente a um romântico 1959, ano de lançamento, mesmo que a baderna urbana nos acorde a todo instante a fim de dissipar o breve devaneio. É uma dessas surpresas que, por si só, transformam o dia em um autêntico evento e alteram completamente meu humor (voltei para casa na maior empolgação, tocando air drums de um jeito a fazer inveja em qualquer Keith Moon da vida), até porque eu nunca imaginei que pudesse entrar em um cinema, plena quinta-feira, às 15h, para assistir Cassavetes. Como já tinha visto o filme, além da disposição para revê-lo, pensei no momento como um catalisador de emoções cinéfilas, tal qual Truffaut faz em A Noite Americana, quando relembra o tempo em que roubava fotos de Orson Welles no cinema da cidade. É o destino fazendo seus improvisos.

O filme é a gênese do cinema cassavetiano, o primeiro momento de uma visão que reformulou parâmetros e apresentou novos meios de organização diante da câmera, instaurando um conceito fundamental que marca o compasso de grande parte de sua filmografia: a liberdade de criação atrelada às necessidades básicas na construção de um filme. É por isso que este, mais do que qualquer outro (talvez Faces possa servir na comparação), se mostra isento de qualquer preocupação hierárquica de enquadramento, de roteiro ou interpretação. Libertando-se das amarras que acabavam por limitar e tornar mecânico um processo que tinha por necessidade a aproximação com o real, o humano, Cassavetes faz um filme que se equilibra nos ímpetos juvenis e nas conseqüentes tensões que por ali se firmam, amoral e impulsivo, trazendo os personagens para primeiro plano e engendrando a narrativa através deles (traindo a convenção que prega o contrário). Os closes são agressivos, aproximam ao máximo a câmera do rosto na iminência de revelar o âmago da contenção amarga que existe em cada personagem. Me lembro da linda seqüência de diálogo entre Lynn Carlin e John Marley em Faces, na mesa de jantar, onde a confusão de sentimentos oscila entre dois extremos enquanto a ruína de uma relação é deflagrada através da ambigüidade entre gozo e dor. Em Sombras, o instante é a dança, já no final, que começa no riso e deságua no pranto, momento-síntese de um cinema que busca exaurir o homem ao máximo a fim de encontrar a natureza de sua essência. A frase que aparece ao final é um alívio beat - criva um estado de espírito de libertação que casa muito bem com a sensacional trilha sonora de Charles Mingus.



 


é isso aí, bicho

 

30.10.08


[1:56 PM]

Quando os irmãos Perrella anunciaram o Adilson Batista para o comando do Cruzeiro, no início desse ano, abrindo mão do eficiente Dorival Júnior (hoje no Coxa), que tinha garantido o clube na Libertadores 2008, fui um dos primeiros a chiar. O currículo do Adilson não é lá essas coisas, até porque o cara não teve oportunidade de trabalhar em quase nenhum time de relevância. Paraná, talvez. Mas, progressivamente, ele vem provando que é bom técnico. Ousado, moderno, com um esquema de jogo ofensivo, dinâmico, que explora bem a leveza dos jogadores que atuam do meio pra frente. Meio suicida, às vezes, como quando escala o time com 3 volantes ou simplesmente com nenhum atacante. O erro mais comum é o mesmo que acomete pelo menos 95% das comissões de todos os clubes do Brasil (e que fez a grande diferença a favor do Joel em sua última passagem pelo Flamengo): o medo de jogar bola fora de casa. Os times já entram em campo objetivando o empate, o ponto único “que lá na frente poderá fazer toda a diferença”. O Cruzeiro mais uma vez perdeu a grande chance de assumir a ponta do campeonato, na penúltima rodada, contra o Atlético do Paraná, quando resolveu se armar defensivamente, sacando o Wagner do meio e metendo o Fernandinho para formar dupla com Ramires e servir o Thiago Ribeiro e o Guilherme, que ultimamente vem jogando mais recuado e pelo meio, buscando jogo e fazendo a diferença (vide a aula de bola do cara ontem, contra o Grêmio). Foi uma formação muito esquisita, Ramires subindo o tempo todo, não se entendendo em nenhum momento com o estilo do Fernandinho, enquanto o Guilherme descia para buscar jogo e não encontrava parceiro para passar a bola. Resultado: mesmo superior, o Cruzeiro perdeu o jogo e continuou na terceira posição.

Aí ontem, Mineirão lotado, volta o Wagner para o meio de campo, e com 15 segundos de jogo, 1x0 Cruzeiro. 15 segundos que destruíram toda uma tática de 90 minutos. Adilson sabe que time tem que jogar pra frente, buscar um jogo que visa a exploração da qualidade técnica de seus jogadores em relação à defasagem da equipe adversária, sem medo. O ditado é velho mas válido: “em time que tá ganhando não se mexe”. Era o duelo entre o 3° da tabela e o penúltimo, praticamente rodada bônus – agora, caso o Cruzeiro não alcance o título, não me resta dúvidas de que o campeonato foi perdido ali, por pura cautela e policiamento equivocado (e com o adicional de uma expulsão inesperada, logo no início do jogo). Contra o Goiás, no Serra Dourada, domingo, eu espero que o time mostre serviço e faça jus ao seu potencial com um resultado positivo, mesmo achando que a vitória seja improvável, ainda mais com o Ramires suspenso. O campeonato, a essa altura, infelizmente tá mais para o São Paulo do que para qualquer outro time. Tomara que eu esteja errado e que a arbitragem nos livre de mais um Lyon, pelo bem do nosso futebol (e da nossa virilidade, vamos lá).



 


é isso aí, bicho

 

29.10.08


[2:06 PM]

Não bastava aquele ovo arremessado na janela do ônibus que passava pela Presidente Vargas, atingindo em cheio o lado esquerdo da cabeça da senhora das sacolas, o cara ainda ficava gritando no meu ouvido que tinha largado as drogas, que no meio de um caminho de trevas a luz se fez e – tcharam! – Jesus apareceu em sua vida, que perdeu a mulher e os dois filhos quando caiu no fundo de um abismo e que agora precisava de qualquer ajuda para ajudar outras pessoas a encontrarem a mesma luz e seguirem seu caminho em paz. Ok, Thomas Edison, meus cinqüentas centavos são investidos em fichas de fliperama, uma cachaça, dois chicletes de caixinha ou numa máquina de jogo do bicho, menos na sua mão, só pelo fato de você não possuir o botão do MUTE pregado na testa. That’s the lei do livro-arbítrio. Se a música de fim de ano da Globo já começa a ecoar pelos cantos do meu cérebro eletrônico, os próximos dois meses supõem uma batalha para a qual eu não me preparei por completo. Talvez por isso não vejo a hora de enfrentá-la, pois, para quem nasceu prematuro, horário de verão não é nada. Pode ser que nos encontremos na locadora mais próxima, que eu venda um livro para sua tia ou até mesmo que eu apareça na sua cozinha carregando um galão de água Indaiá. As pessoas por aqui carregam olhos de assassino, degolando e expondo vísceras pela rua sem dar satisfação, sangue no metrô, mares vermelhos, como se sessenta segundos não fossem suficientes para saltar do vagão.

“People are crazy and times are strange”

O meu prazer em escrever qualquer coisa que seja neste espaço está justamente na possibilidade de me aproximar de pessoas que não conheço, da intimidade imaginária que estas linhas constroem e que me apaziguam através do conforto do anonimato. Entrar pelo bar lotado e ser vítima de homicídios visuais enquanto procuro pelo ombro descoberto, pela raiz cada vez mais branca dos cabelos e a sobrancelha que se faz fina como uma veia negra sobre os cílios, as coisas podem fazer mais sentido se eu disser que o jogo começa muito antes disso. Say hello to my little friend. Nesse espaço não existe identidade, não há forma física que dê conta do fluxo que escorre pelas pernas dela e me deixa confuso, atordoado, apaixonado. É só sentar ao meu lado na poltrona para assistir um Ozu e pousar a bolsa no meu colo, não ligo em guardá-la enquanto seu celular toca e você sai da sala para atender. Eu sei que as dimensões pequenas do meu rosto no espelho não conseguem te intimidar, mas eu não ligo, já disse; basta de copos cheios e pessoas certas, há um tatame para os que caminham a esmo e arremessam ovos em Wall Street à procura de um chão que se dispa do efeito ultrapassado da gravidade. Pode ser que tudo não passe de um alívio branco, passageiro, viagem de ventania: o que interessa é que preciso urgentemente encontrar um modo de me jogar no meio dessa multidão, com as retinas afiadas, prontas para fatiar em pedaços pequenos qualquer uma que atravesse meu caminho.

P.S.: Gil, pode vir que Cassavetes está no último trem da estação, 19h.



 


é isso aí, bicho

 

27.10.08


[11:03 PM]

“Havia, também, umas pausas. Duas outras vezes, pareceu-me que a via dormir; mas os olhos, cerrados por um instante, abriam-se logo sem sono nem fadiga, como se ela os houvesse fechado para ver melhor. Uma dessas vezes creio que deu por mim embebido na sua pessoa, e lembra-me que os tornou a fechar, não sei se apressada ou vagarosamente. Há impressões dessa noite, que me parecem truncadas ou confusas. Contradigo-me, atrapalho-me. Uma das que ainda tenho frescas é que, em certa ocasião, ela, que era apenas simpática, ficou linda, ficou lindíssima. Estava de pé, os braços cruzados; eu, em respeito a ela, quis levantar-me; não consentiu, pôs uma das mãos no meu ombro, e obrigou-me a estar sentado. Cuidei que ia dizer alguma cousa; mas estremeceu, como se tivesse um arrepio de frio (...)”


“Situations have ended sad,
Relationships have all been bad.
Mine've been like Verlaine's and Rimbaud.
But there's no way I can compare
All those scenes to this affair,
You’re gonna make me lonesome when you go.

You’re gonna make me wonder what I'm doing,
Stayin' far behind without you.
You’re gonna make me wonder what I'm saying,
You’re gonna make me give myself a good talkin' to”



 


é isso aí, bicho

 

20.10.08


[7:33 PM]


Rumo ao título!



 


é isso aí, bicho

 

16.10.08


[3:10 PM]


Acho engraçado quando leio por aí, em alguma crítica ou resenha descompromissada, que tal filme ou livro não chega a lugar nenhum. Que vai do nada ao nada. Culpam o que muitas vezes é uma opção de recorte e se justificam com argumentos tão convincentes como preguiçosos. Parece que o último filme da Lucrecia Martel, A Mulher Sem Cabeça, foi vaiado em Cannes esse ano, e a acusação de alguns críticos se baseou no fato de que nada foi dito, de que não existe porto onde Martel ancore as pretensões de seu barco. Conversa fiada. Como alguém pode exigir sentido e coerência de uma obra de arte, sendo que abrimos mão de toda a compreensão do mundo em que vivemos e simplesmente nos deixamos levar pelo encadeamento indiferente do dia-a-dia? Acredito que a existência de uma representação artística se concretiza principalmente quando se dissocia de fatores externos, políticos ou não, reafirmando-se de acordo com os conceitos que propõe e destrói, simultaneamente. Por isso que o filme bateu com tanta força na minha cabeça, por representar a opção de se impor enquanto instrumento artístico ante a necessidade de causar reflexão, de traduzir o vazio que preenche o homem contemporâneo inserido na atual sociedade pós-moderna e etc. Camisa-de-força estética? Cada um com seu cinema, sua visão de mundo e respectivo quadrado.

O Pântano eu assisti logo no começo da cinefilia, um ano após seu lançamento, em 2002 (portanto, com 15 anos), e me lembro muito mais de especificidades do que do filme em si: o calor argentino, a piscina, o lodo e o tombo da escada, já no final. Idéia de imobilidade, estagnação, um espaço de maior abrangência para a interpretação do sufoco como metáfora - preciso revê-lo antes de desenvolver qualquer outra coisa, só que só daqui uns dias (aliás, a única cópia que existe é essa tosca em fullscreen?). A Menina Santa é o corpo em primeiro plano, o eterno conflito barroco entre alma e carne em personagens inundados de sentimentos, manifestando-se através do jogo entre repressão e expressão, a ponto de explodirem em cores vivas e quentes que os limites da pele quase sempre acabam por reprimir. É o cinema do extra-tela, em que a insuficiência do quadro na organização e no suporte dos corpos em cena é aproveitada através de uma rigorosa opção pela arquitetura do plano, onde, convenhamos, está o principal talento da Lucrecia: a mulher encena bem pra cacete. A posição de cada objeto em cena se dá de maneira deliberadamente geométrica, quase teatral, a ponto de favorecer a textura dos personagens com um esplêndido trabalho de luz e som. Se nos dois primeiros filmes há a pluralidade de corpos se chocando, organizando-se com o mínimo possível de toque, A Mulher Sem Cabeça centraliza seu foco em apenas um, o de Verônica, a protagonista estuporada. A inércia de Verônica atravessa as margens da narrativa a ponto de transcender para a forma do filme, lento, contemplativo, de poucos diálogos. Volta-se para o íntimo como arma de defesa contra o inconsciente que a faz crer ter cometido um assassinato.

Existe, no filme, um reprocessamento de códigos de gênero que atravessa diversos terrenos e não se fixa em nenhum: com seu rastelo em mãos, Martel corta o espaço e introduz nele um elemento que mais se aproxima do suspense, trabalhando justamente com a idéia de iminência, a ameaça que precede o acontecimento, mas que não chega a se concretizar. Embora o viés hitchcockiano perpasse toda a narrativa, não há como negar uma tendência do filme ao sobrenatural, principalmente nos trechos próximos do desfecho; e ao drama existencial, embora seja no mínimo irresponsável atentar para qualquer classificação que restrinja o alcance da obra. Martel está ali, em todas as seqüências, em cada enquadramento que oculta a cabeça de sua protagonista e no mais disfarçado movimento respiratório de seu organismo, e vem daí muito da força de seu filme: o mergulho da cineasta em seu estilo de fazer e pensar cinema no universo paralítico da protagonista, abrindo mão de linearidade, de movimento, de um fluxo discursivo de idéias para pinçar a imposição da mente sobre o corpo de uma forma poética, polindo cada frame com rigor e extraindo o máximo de cada componente que passeia pela tela. A opção pelo cinemascope ainda não é suficiente para agregar todo o imaginário ambíguo que marca o compasso da narrativa, ainda que a exploração do espaço confirme a cada fotograma o talento da argentina e o olhar curioso de sua câmera estática. O apreço pelo cinema de David Lynch aparece como reflexo nos minutos finais deste filme, na conclusão que fundiu minha cabeça e me fez abraçar o mundo dessa mulher sem cabeça com unhas e dentes. Fantasmas? Nós passaremos, o registro ficará.

“Não penso nas interpretações que virão, mas acredito que o processo de criação tenha a ver com isso. Gosto de percorrer terrenos mais indefinidos, mais ambíguos, e isso sempre gera maiores possibilidades de interpretação. Não faço isso para que o público se desconcerte, e sim porque me parece que por aí se revelam as coisas. Quando me perguntam o que quero dizer com meus filmes, digo que não quero dizer nada. Quero compartilhar com o espectador um tempo, uma situação, uma emoção, uma conversa. Isso é mais importante para mim do que contar uma história. É o desejo de se comunicar, que nos move.”

A Mulher Sem Cabeça (La Mujer Sin Cabeza, Lucrecia Martel /2008)



 


é isso aí, bicho

 

13.10.08


[2:22 PM]

Entre mortos e feridos, vistos e revistos, a atrasada constelação do mês passado, no habitual padrão de zero a cinco estrelas. Palmas e mais palmas para as duas obras-primas do mês, que ficaram por conta da hermana Lucrecia Martel (e esse novo dela, hein? Que viagem!) e do Godard.


1. Síndromes e um Século (Sang Sattawat, Apichatpong Weerasethakul /2006) - * * *

2. A Fronteira da Alvorada (La Frontière de L’aube, Philippe Garrel /2008) - * * *

3. Mal dos Trópicos (Sud Pralad, Apichatpong Weerasethakul /2004) - * * * *

4. A Menina Santa (La Niña Santa, Lucrecia Martel /2004) - * * * * *

5. Contos da Lua Vaga (Ugetsu Monogatari, Kenji Mizoguchi /1953) - * * * *

6. O Desprezo (Le Mépris, Jean-Luc Godard /1963) - * * * * *

7. Let’s Spend the Night Together (Hal Ashby /1983) - * *

8. Terra dos Mortos (Land of the Dead, George A. Romero /2005) - * * * *

9. A História de Adèle H. (L’histoire d’Adèle H., François Truffaut /1975) - * * * *

10. O Estranho (The Stranger, Orson Welles /1946) - * * *

11. O Último Golpe (Thunderbolt and Lightfoot, Michael Cimino /1974) - * * *

12. Edu, Coração de Ouro (Domingos de Oliveira, 1968) - * * *

13. Linha de Passe (Daniela Thomas & Walter Salles, 2008) - * * *

14. Sympathy for the Devil (Jean-Luc Godard, 1968) - * * * *

15. O Nevoeiro (The Mist, Frank Darabont, 2008) - * * * *

16. Nome Próprio (Murilo Salles, 2008) - * * *

17. Beija-me, Idiota! (Kiss me, Stupid, Billy Wilder /1954) - * * * *



 


é isso aí, bicho

 

10.10.08


[1:29 PM]

- Salvo engano, o único filme de Nicholas Ray que pude assistir em seu formato ideal foi Juventude Transviada, já que todos os outros foram redimensionados e exibidos fora de sua janela correta. Mas não adianta; seja no metrô ou em uma asa-delta, se o livro for bom, dificilmente eu fecho as páginas e espero pela calmaria e maciez da minha cama, leio ali mesmo. Com os filmes é a mesma coisa, embora a sensação de incompletude reine em cada seqüência picotada pelas distribuidoras ou telecines da vida. Dia desses assisti Sangue Sobre a Neve (no original, The Savage Innocents), que mantém Nicholas Ray invicto por essas bandas daqui. Só mesmo a força do registro visual para disfarçar o fullscreen horroroso e injusto, que acaba por reduzir toda a beleza de campo aberto do Ártico que ambienta a narrativa a um nível muito menor do que o original. Mas, ainda assim, a predileção de Ray para tratar de seres à margem encontra aqui um enlevo ainda mais interessante, que joga luz sobre conceitos morais e discute questões cívicas através do choque entre duas sociedades diferentes, abstendo-se de colocações maniqueístas e impondo a reflexão a todo instante, como só os verdadeiros mestres sabem fazer. Está lá no topo da obra do cara, pau a pau com Johnny Guitar e No Silêncio da Noite.

- Só vi dois filmes dele e obviamente estou longe de ter o conhecimento necessário para fazer qualquer julgamento sobre sua obra, mas o fato de o Arnaldo Jabor estar há tanto tempo longe das câmeras me agrada cada dia mais. Toda Nudez Será Castigada eu assisti na faculdade, um dia após ter lido a peça do Nelson Rodrigues, para apresentar um trabalho para o resto da turma. Achei o filme fraquíssimo, sem a menor noção de ajuste entre os elementos que o Nelson equilibrava com tanta destreza: o texto é irônico, mordaz, retrato cruel de um núcleo social brasileiro que se desestabiliza quando as aparências começam a ceder perante o verdadeiro “eu” de cada um, num jogo de interesses onde a hipocrisia nacional é capitã do time. Aí vem o Jabor e adapta a obra e extrai dela todo seu potencial dramático, inserindo um tom humorístico afetado que combina muito bem com a decisão de mudar o final e faz com que o filme seja realmente risível. Talvez o fato de o texto estar muito fresco na minha cabeça tenha prejudicado em demasia minha visão do filme, pode ser que um distanciamento temporal entre as duas linguagens seja necessário para que as coisas funcionem melhor. Ou talvez essa onda de passar livro e filme para abrandar o nível da discussão não passa de uma tremenda bobagem e acaba sendo um tiro no próprio pé. Enfim, só pra deixar gravado que ontem fui rever Sem Essa, Aranha (afinal de contas, a vírgula existe ou não?), mas na hora soube que a sessão havia mudado de horário e que iriam exibir Tudo Bem, filme de 78 do Jabor, que é igualmente fraco, mas se sustenta graças ao trio formado por Fernando Torres, Jorge Loredo e Luiz Linhares. A seqüência dos três bêbados mais Paulo Gracindo na cozinha é memorável, respeitando o espaço e o desempenho de cada um dos três atores enquanto eu lamentava o pouco tempo de cena deles em contraste com a excessiva duração do filme.

- Os livros, aqueles objetos transcendentes de amor táctil etc., andam sumidos por aqui mas não das minhas mãos. Nos últimos dias li o último romance de Kurt Vonnegut (pode deixar que esse eu devolvo, Jana) e o primeiro de Jack Kerouac, após inúmeras tentativas frustradas e sobre o qual desenvolverei algo mais tarde. Mas a maior surpresa mesmo veio com Fitzgerald, de quem eu nunca consegui chegar ao final do Gatsby – e olha que a minha edição, comprada por um simbólico real, possui menos de 130 páginas -, mas que me arrebatou desde o início com Suave é a Noite. Que livraço, bicho, devorei em menos de cinco dias, provavelmente é meu recorde este ano, levando em conta as proporções da coisa, claro. Se no Gatsby temos todo um entre-texto funcional, com elipses que marcam o compasso das relações desgastadas entre o pessoal do pós-guerra, em Suave é a Noite o cara é objetivo, vai direto ao ponto, cutuca as feridas da sociedade americana a fundo e não poupa nem mesmo suas experiências pessoais na elaboração da narrativa (a relação com o sanatório é abordada e possui paralelos com a internação de sua esposa Zelda Fitzgerald, que foi internada devido à uma doença mental). É interessante acompanhar a ruína de todos seus personagens, que começam juntos e felizes numa praia na Riviera Francesa e terminam separados e corroídos, seja pela distância ou por obstáculos maiores, dentre eles a morte. A precisão na construção psicológica dos personagens é cirúrgica, ressaltando o vazio existencial entre a 1ª Guerra e a Grande Depressão com um olhar analítico que evita os falsos juízos e outros moralismos. É por essas e outras que eu gosto de passar no sebo mesmo com módicos $5 no bolso, ninguém nunca sabe o que aquelas prateleiras empoeiradas ali serão capazes de nos proporcionar (além de uma alergia infernal, claro).

- E essa aranha é para todos os poetas mortos do nosso cinema. A frase é de Welles e consta numa capa de revista exibida em um rápido trecho de Tudo é Brasil, do Sganzerla:

“Um filme deixa de existir quando passa a ser apenas veículo de uma mensagem.”



 


é isso aí, bicho

 

 


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