qualquer coisa
num verso intitulado mal secreto
 

28.3.08


[6:13 PM]

Sempre tive muito apreço por cineastas que sabem trabalhar o silêncio de forma eloqüente em seus filmes. Cineastas que possuem o dom de expressar através das nuances dos atores e de suas ações o turbilhão de sentimentos pelos quais estes são atravessados durante o desenvolvimento da narrativa. Enganam-se os que pensam que, para isso, precisa-se da elasticidade facial de um Jim Carrey da vida. Porque, afinal de contas, nós sabemos que os que falam demais é porque raramente têm algo de valor a ser dito. E o mesmo protocolo pode ser aplicado à atuação: quanto menos for exposto, maior pode vir a ser a assimilação por parte do espectador. Claro que nem sempre é assim, não se trata de uma afirmação inconteste, mas como o poder de síntese (principalmente visual) sempre foi de meu agrado, não me surpreendi nem um pouco quando me vi fascinado pelos filmes de Robert Bresson.

Um dos objetivos de seu cinema é trabalhar o minimalismo e fazê-lo de ordem primordial na organização de seu universo narrativo. Tudo é simplificado: os diálogos, os movimentos dos atores, suas expressões, há uma contenção perene que dá certa significação ao que ele acredita ser a raiz das relações humanas. "A incomunicação está por trás de tudo o que faço", disse ele, em seu famoso livro de 75. Não é preciso gritar, sorrir ou até mesmo se manifestar com demasiado exagero para que sejamos compreendidos. A Grande Testemunha, seu filme de 1966, expõe de maneira brilhante a necessidade de se voltar para o íntimo, de se comunicar através do corpo e do olhar. E é esse olhar que move o filme, o do jumento Balthazar, criatura adorável através da qual se filtra todo o contigente emocional provocado pelas ações do homem. Balthazar vê o mundo que o rodeia calado, sem se projetar, e é na maioria das vezes vítima das intenções nada humanitárias dos que o permeiam.

É uma sacada de gênio expor as mazelas causadas pelas ações do homem através do olhar tácito de um animal. Não há julgamentos, pressuposições, são apenas acontecimentos naturais que se desdobram e atingem conseqüências drásticas ao longo da narrativa. Godard certa vez disse que o mundo inteiro está nesse filme, em uma hora e meia. A despeito de sua já desgastada verborragia habitual, Godard sempre foi e continua sendo um frasista de primeira linha, indo sempre ao âmago da questão. E o que diz aqui casa perfeitamente com o que vemos na tela, mesmo A Grande Testemunha sendo um filme cujo potencial abarca muito mais do que só as imagens podem sugerir. E só através do distanciamento que o olhar animal nos proporciona é que vemos o quão híbrida (e isso pode ou não soar como uma característica positiva) e, acima de tudo, individualista, é a condição humana. Mesmo com todos os problemas de sincronia de legenda no terço final, é um grande filme ao qual voltarei com grande certeza.

O mesmo pode-se dizer, com um tom mais moderado, sobre Pickpocket, o já tão falado filme de Bresson, inspirado no Crime e Castigo do russoiévski preferido da galera do Orkut. Não tenho muito a contribuir de original acerca das projeções que o filme dá a seus personagens, e seria também muito simplório e uma confirmação de preguiça da minha parte descreve-lo como uma mera adaptação visual da obra literária. E se as inquietações descritas no livro são certamente identificáveis com sensações que todos nós já sentimos ao menos uma vez na vida (ok, vai me dizer que você nunca roubou bala ou chocolate nas imensas prateleiras abertas das Lojas Americanas?), Bresson serve-se dessas excitações mentais para forjar um anti-herói calado, que não demonstra sentimentos de remorso pelos atos repulsivos que comete - pelo contrário, sente-se cada vez mais apto dentro de suas ações e até se faz dono da teoria dos homens extraordinários - da qual sou ferrenho seguidor - para justificar suas ações. É um filme que precisa ser visto, no mínimo, duas ou três vezes para que suas implicações e nuances sejam devidamente absorvidas.

* * *

E só para não deixar passar em branco, até porque seria uma baita de uma injustiça, assisti essa semana Novo Mundo, último filme do cineasta italiano Emanuele Crialese. Já tinha ouvido muitos elogios de opiniões respeitosas sobre o filme, mas só me convenci de ir vê-lo em sua derradeira exibição na última semana em que esteve em cartaz por aqui porque o mecânico desmarcou o conserto da pia do banheiro de última hora. E, depois da sessão, nunca me senti tão bem escovando os dentes no tanque e agradecendo imensamente por isso. O filme é uma obra-prima que conjuga com destreza o universo real com o fantasioso, e cada vez mais tenho a impressão de que sua realização (como a de tantos outros filmes, certo, mas até por questões geográficas fica mais evidente neste caso em particular) não seria possível sem o cinema de Rosselini e de Federico Fellini. Crialese absorveu tão bem os conceitos presentes nas obras dos dois cineastas que seu filme é reflexo puro de ambas as propostas, e se mostra tão bem sucedido quando investe no universo onírico do imaginário dos imigrantes italianos quanto na retratação de suas cruéis condições sociais. E Charlotte Gainsbourg está linda, gélida, quase plástica. Filme imperdível.



A Grande Testemunha (Au Hasard Balthazar, Robert Bresson /1966)

O Batedor de Carteiras (Pickpocket, Robert Bresson /1959)

Novo Mundo (Nuovomondo, Emanuele Crialese /2006)




 


é isso aí, bicho

 

19.3.08


[1:41 AM]

Talvez o paralelo mais evidente que possa ser estabelecido entre Gêmeos e Senhores do Crime esteja vinculado a uma visão dual que Cronenberg emprega sobre seus personagens e que se mostra presente também em outros momentos de sua filmografia. Se, no filme de 88, Jeremy Irons interpreta dois irmãos siameses com características complementares e o desejo incessante de se tornarem apenas um, em sua mais recente empreitada há uma preocupação em realçar a ambigüidade inerente à grande parte dos personagens em cena. No mundo de Cronenberg, ninguém é o que aparenta ser. E é justamente nessa luta entre as várias possibilidades de existência e sua real condição onde figuram os melhores momentos de ambos os filmes.

Gêmeos é um filme assustador, desde a concepção de sua idéia até a execução encenada na tela. A cada desdobramento a história se mostra mais perturbadora, à medida em que os irmãos percebem que por maiores que sejam suas pretensões individuais, há um elo que os une cujo alcance vai além do plano físico e evidencia a necessidade de um esforço muito maior do que a mera dissensão psicológica para que se concretize a dissociação anatômica. Os minutos finais, onde se efetiva a separação e toda a complementação que antes servia aos dois irmãos se concentra num único corpo, certamente são dos momentos mais densos já filmados por Cronenberg. Provavelmente encabeçaria o topo de uma hipotética lista minha de preferidos do homem, mas antes preciso ver alguns filmes dele da década de 1990 com os quais ainda não tive contato.

Quanto a Senhores do Crime, que vi há quase um mês num multiplex inusitadamente lotado, é um filme que avança ainda mais na questão psicológica que o diretor vem imprimindo em seu cinema nos últimos anos, cuja síntese máxima esteja no excepcional Marcas da Violência, este sem dúvida um filme maiúsculo, de grande poder. Ainda que o corpo humano, sua conflitante relação com a mente e as conseqüências desse embate estejam em voga durante boa parte da narrativa – e cabe às tatuagens e seus vários significados representarem esse contato -, é nas variações acerca das personalidades que se cruzam onde o cineasta mantém o foco de seus interesses. Deixando as vísceras e o fascínio por mutações e transmutações genéticas de lado, Cronenberg mergulha no mundo da máfia russa para tratar da política das relações de uma maneira classuda, econômica, sem deixar de recorrer em momento algum ao âmago de suas inquietações enquanto realizador cinematográfico. E, quanto à sua capacidade de encenação, prefiro que a seqüência da sauna fale por si só. É impressionante.




 


é isso aí, bicho

 

12.3.08


[5:13 PM]

“O homem, quando jovem, é só, apesar de suas múltiplas experiências. Ele pretende, nessa época, conformar a realidade com suas mãos, servindo-se dela, pois acredita que, ganhando o mundo, conseguirá ganhar-se a si próprio. Acontece, entretanto, que nascemos para o encontro com o outro, e não o seu domínio. Encontrá-lo é perdê-lo, é contemplá-lo na sua libérrima existência. É respeitá-lo e amá-lo na sua total e gratuita inutilidade. O começo da sabedoria consiste em perceber que temos e teremos as mãos vazias, na medida em que tenhamos ganho ou pretendamos ganhar o mundo. Nesse momento, a solidão nos atravessa como um dardo. É meio-dia em nossa vida e a face do outro nos contempla como um enigma. Feliz daquele que ao meio-dia se percebe em plena treva, pobre e nu...”


Trecho de uma carta escrita pelo poeta e ensaísta Hélio Pellegrino (1924-88).



 


é isso aí, bicho

 

7.3.08


[3:33 AM]

O historiador brasileiro Eduardo Bueno certamente tem muita história pra contar. Em 1978, no embalo dos vinte e poucos anos, chapado com Kerouac e seu livro libertário (aquele que fundiu a cuca de meio mundo), colocou uma mochila nas costas e se mandou para os Estados Unidos. O objetivo era refazer a mesma rota percorrida pelo escritor beat quase três décadas atrás: atravessar o país e chegar até o México de carona, usando o máximo possível de substâncias alucinógenas e mergulhando de cabeça em todo o tipo de experiência que só o convívio humano e a interação são capazes de proporcionar. Há 30 anos não era totalmente perigoso se aventurar de maneira impulsiva pelas estradas ianques, e os relatos andantes de Kerouac inspiraram muitos jovens a largar o que não tinham e a partir numa busca pelo desconhecido, pelo mistério que alimenta a juventude. Diante da possibilidade de sair de um país em ruínas, esfacelado moralmente e sem perspectiva de futuro, Eduardo fez o caminho oposto dos milhares de exilados que voltariam ao Brasil no ano seguinte, agraciados com o perdão da anistia. Ele iria para o Santiago de Compostela underground, da curtição e da tríplice sexo, drogas & improviso.

Kerouac dizia que todo homem precisa viajar, rodar o mundo para conhecê-lo com os próprios olhos, e não através de imagens ou relatos de terceiros. É preciso se envolver, se permitir dinamizar com o ambiente e com aqueles que o ocupam. O sentimento de libertação que a estrada sugere faz com que o destino final seja sempre aquele lugar inexplorado dentro de nós, um ponto escuro esperando pelo momento certo em que será ativado. A partir dessas e outras tantas digressões acerca da liberdade, dá para se ter uma idéia do porquê de o cara ter voltado para o Brasil embriagado de Kerouac. A sensação de não ter destino, de se desamarrar dos compromissos sociais e de todos os imbróglios do dia-a-dia era tão boa que algo precisava ser feito. O primeiro passo era transmitir tais ideais para o maior número possível de pessoas. O que não deixou de ser uma tarefa das mais ingratas, já que até então o livro não havia sido lançado por aqui. Foi assim que, com a colaboração de Antônio Bivar, On The Road chegou ao Brasil. A primeira tradução, assinada pelos dois, é de 1984 e vem com o subtítulo Pé na Estrada.

Mas se o som que era a trilha do livro e fazia a cabeça do escritor americano era o jazz, Bueno pirava quando ouvia Bob Dylan. O fascínio era tanto que o cara colheu uva durante 3 semanas na Europa para ver Dylan ao vivo. Tentei algo do tipo na Prado Júnior com o mesmo objetivo semanas atrás, mas não tive sucesso e ainda não entendi o porquê. Mas, como eu dizia, quando Dylan veio ao Brasil, em 1990, Bueno foi até o hotel para tentar um contato com o ídolo. E conseguiu. Através de muita conversa e da inteligência peculiar de quem escreveu uma biografia dos Mamonas Assassinas, Bueno esteve por um momento incumbido de uma tarefa restrita a um grupo seletíssimo de pessoas: a de acender e passar um baseado para Bob Dylan. Ao consumar o fato, o historiador estava evocando um ritual que já fora presenciado por gente da estirpe dos Beatles. Estar ali era compactuar com a personificação da poesia, da contracultura, do rock’n’roll e de toda a essência turbulenta e insurgente dos anos 60. Judas. E quem não gostaria de se sentir o Paul McCartney pelo menos uma vez na vida?

A amizade fora travada com Victor Maymudes, à época empresário e mentor de Dylan. Mas, no ano seguinte, dois dias antes do show que fez em Porto Alegre, Dylan saiu para caminhar pelas ruas da cidade com Bueno, Maymudes e um segurança. Assim, desse jeito. Um rolé. Foram ao morro de Santa Teresa ver o pôr-do-sol e fumar um, para depois matar a larica na barraca 40 do Mercado Público. Se o momento não foi retratado em I’m Not There, é porque trata-se de só mais uma amostra do que é ser Bob Dylan e das conotações por trás desse nome. E também não diz respeito a ninguém que não seja o próprio Bueno. Tanto por isso que a relação com ídolo é motivo de silêncio, quase nada se sabe sobre o que se passa quando se encontram. E, lendo a biografia do homem, intitulada apenas Dylan e escrita por Howard Sounes, dá pra perceber que o brasileiro não é o único a optar pela omissão respeitosa quando se trata de Bob Dylan. Mesmo assim, quando é abordado sobre a intensidade do sentimento que nutre pelo judeu de Minnesota, Bueno não esconde e dá até entrevista para o Jornal da Globo cunhando frases marcantes e elogiosas sobre o ídolo. É ele também quem assina o posfácio do livro Crônicas - vol. 1, o primeiro de uma trilogia autobiográfica assinada pelo roqueiro e lançada por aqui há uns três anos.

Eu, que tenho poucas chances de vê-lo tocando ao vivo no sábado, me contento com essas e outras saudosas histórias para trabalhar a imaginação e recriar momentos que, errônea e infelizmente, ainda não foram vividos. E fico cada vez mais satisfeito em saber que meus verdadeiros heróis ainda não morreram de overdose, e que estão sempre pintando por aí, como os melhores mistérios da vida. Just like a woman.




 


é isso aí, bicho

 

2.3.08


[9:27 PM]

And you want somebody you don't have to speak to...




...won't you come see me, Queen Jane?




 


é isso aí, bicho

 

1.3.08


[5:31 PM]

Filmes em fevereiro, de 0 a 5 estrelas:


1. Veneno (Poison, Todd Haynes, 1991) - * * * *

2. Sweeney Todd, o Barbeiro Demoníaco da Rua Fleet (Sweeney Todd, Tim Burton /2007) * * * *

3. Jogo de Cena (Eduardo Coutino /2007) - * * * * *

4. Onde os Fracos Não Têm Vez (No Country For Old Men, Joel & Ethan Coen /2007) - * * * * *

5. Juno (Jason Reitman /2007) - * *

6. Amantes (Love Streams, John Cassavetes /1984) - * * * *

7. A Comédia do Poder (L’lvresse du pouvouir, Claude Chabrol /2006) - * *

8. A Mulher de Todos (Rogério Sganzerla /1969) - * * * * *

9. Jogos Mortais (Saw, James Wan /2004) - *

10. Barton Fink - Delírios de Hollywood (Barton Fink, Joel & Ethan Coen /1991) - * * * * *

11. Aguirre, a Cólera dos Deuses (Aguirre, der Zorn Gottes, Werner Herzog /1972) - * * * *

12. Sangue Negro (There Will be Blood, Paul Thomas Anderson /2007) - * * *

13. Fargo (Joel & Ethan Coen /1996) - * * * *

14. Nashville (Robert Altman /1975) - * * * *

15. A Espiã (Zwartboek, Paul Verhoeven /2006) - * * * *

16. A Morte Passou Por Perto (Killer’s Kiss, Stanley Kubrick /1955) - * * *

17. O Grande Lebowski (The Big Lebowski, Joel & Ethan Coen /1998) - * * *

18. No Direction Home (Martin Scorsese /2005) - * * *

19. Cova Rasa (Shallow Grave, Danny Boyle /1994) - * * *


Refém dos cinemas e da fraca programação do Telecine Cult do mês de fevereiro, assisti mais filmes do que esperava e menos do que gostaria. Mas em março as coisas voltam ao normal, para o bem e para o mal.



 


é isso aí, bicho

 

 


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