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Trecho extraído das últimas cinco páginas do argumento de um filme idealizado por Antonioni, em 1975, intitulado Technically Sweet (Tecnicamente Doce). Provavelmente seria a primeira – e única - incursão do cineasta pelo campo da ficção científica, e o período a seguir, além de ser bizarro e instigante, nos permite formular uma idéia de como poderia ter sido o novo mistério imaginado pelo italiano. “Os canibais já descobriram os invasores e os perseguem. É uma corrida exaustiva, desesperada. O jovem à frente, sempre bem à frente, B. atrás, sempre bem atrás. Ele não consegue acompanhar o companheiro. É como se sua disposição para correr viesse da visão de Simone correndo à frente. O jovem aparece e desaparece entre a vegetação. Atrás de B. o barulho dos perseguidores, quase pode sentir a respiração deles em sua nuca. É agonizante não ter forças para correr mais, as pernas não obedecem e agora Simone está fora de alcance. E quando, após um último olhar, o rapaz desaparece, é o fim para B. Ele cai, as unhas fincadas na terra, os olhos cheios de lágrimas de ódio, fixos numa orquídea à sua frente.
Na verdade, as flores reapareceram. E Simone as atravessa em fuga angustiosa. Percebe que o companheiro parou, mas não olha para trás. Sente o coração agitado no peito, mas mantém a todo custo o ritmo espasmódico. E não pára nem mesmo quando ouve um grito lá atrás e um tiro de revólver. Nem um só músculo se altera em seu rosto. Continua correndo, buscando o equilíbrio nas folhas, nas flores, no ar. Até que também ele cai, perto de um buraco cheio de vermes, que rapidamente sobem por seus cabelos.
À beira da selva há uma imensa clareira. O terreno não tem qualquer vegetação alta, mas está coberto de grama, como uma savana. À medida que a câmera se afasta, vê-se que a grama desaparece. Ou melhor, ela aparece cuidadosamente aparada, à mão ou por máquinas feitas pelo homem. Rodovias surgem à vista. Largas, perfeitamente asfaltadas. Todas indo em direção ao mesmo ponto no horizonte, onde uma grande e moderna cidade surge contra o céu azul. Feita de vidro e cimento. Fábricas por todos os lados, sem um fio de fumaça, pois são alimentadas por energia atômica. Os operários das fábricas vivem na cidade ou em bairros satélites nos arredores. Suas crianças vão a escolas modelos, passam os dias ao ar livre, são saudáveis e bonitas. Um grupo delas, entre oito e dez anos, montou um acampamento, que mais parece coisa de estratégia militar do que um jogo. Sob a chefia de um dos rapazes mais velhos, de cerca de 14 anos, estenderam uma grande rede sobre uma parte da floresta, esperando que algum animal selvagem, forçado pela fome, caia na armadilha. A rede é aberta em um dos lados, mas tudo foi planejado para que, uma vez a fera penetre na área, um dispositivo dispare e ela se feche.
As crianças estão ocupadas com seu trabalho. Colocaram sentinelas em vários pontos, com rádios-transmissores portáteis, com os quais se comunicam com o rapaz de 14 ano, que está sempre ouvindo. Seu rádio-transmissor recebe m sinal., Ele ouve cuidadosamente o que dizem e então dá uma ordem a uma das crianças, que corre em direção a um grupo, do qual sai outra criança na direção de outro grupo. Num minuto, todas estão juntas perto da rede, olhando para a floresta. Ao longe alguma coisa aparece, rastejando lentamente pela grama. Não se sabe que tipo de animal é. Todos em silêncio, esperando. O animal está perto da armadilha. As crianças acompanham seus movimentos atentamente, mas com discrição. Esperam o animal passar pela rede, num segundo o dispositivo vai disparar.
Mas o animal pára. Não pode continuar. Está exausto. Conseguiu chegar até lá enfiando suas unhas na terra. Com dificuldade percebemos que é Simone. O jovem levanta a cabeça na direção do sol e vê à distância os contornos de pequenas figuras humanas. Com força sobre humana, estica os braços puxando o corpo para frente. Seus membros doem a cada movimento, a respiração é difícil, mas ele avança assim mesmo, centímetro por centímetro. Até que vê uma corda estendida a sua frente. Apesar de se sentir confuso identifica-a como um objeto familiar e agarra sua última esperança.A rede cai, fechando-lhe a única saída.
As crianças dão um sorriso de satisfação. Acompanham o avanço da criatura com fria curiosidade. Percebem que é um homem e isso aumenta ainda mais sua curiosidade. E o observam rastejando, cada vez mais lento, ouvem sua respiração ofegante em busca de ar, ele está a cerca de 15 metros. A única vida que lhe resta está nos olhos, fixos nas sombras do outro lado da rede. Não tem força sequer para abrir a boca e pedir ajuda. Estende a mão e espera. Mas as crianças não se mexem. Rasteja um pouco mais. As crianças estão impassíveis. Observam atentamente sua agonia, um espetáculo que nunca viram antes: a morte de um homem. Esse mudo diálogo entre o jovem e as crianças dura vários minutos. Finalmente, Simone não consegue mais manter o braço e a cabeça levantados. E cai. O rosto para cima, olhando o céu, que vai ficando azul, até que o azul pouco a pouco se torna negro, cada vez mais negro.”
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