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A primeira vez que eu ouvi sobre um tipo de literatura que abarcava “romance de não-ficção” eu não entendi muita coisa. Como é que, partindo de um processo criativo individual e exclusivo, alguém poderia imprimir um tom documental na narrativa e com isso fundir uma estrutura dentro da outra, atenuando assim os limites entre as duas propostas? Eu sabia que podia ouvir palestras, ler ensaios e assistir várias aulas nas turmas de jornalismo que não seria capaz de compreender essa façanha. Como remediar essa defasagem, então? A Sangue Frio, de Truman Capote, é o livro ideal pra se entender esse novo patamar alcançado pela literatura jornalística. São quatro tiros de carabina no rosto de um pai, uma mãe e seus dois filhos, quatro tiros à queima-roupa que colocaram fim em seis vidas. E que redefiniram os conceitos de criação literária desde então.
O livro começa destrinchando todo o processo que acarretou nos brutais acontecimentos da fatídica noite de 15 de novembro de 1959. A precisão descritiva de Capote nos leva à atraente casa da família Clutter, um lar de pessoas convencionais como as que cruzam por nós todos os dias, com seus desajustes, suas crenças e afazeres cotidianos devidamente respaldados. Só que o escritor não se contentou em apenas retratar o dia-a-dia de um núcleo da sociedade americana, com suas tortas de cereja e suas missas dominicais. A ambição de Capote foi também a sua ruína, e, cansado do convívio com a futilidade que envolvia a nata da sociedade americana, o cara então se debruçou sobre todo tipo de informação a respeito do assassinato dos Clutter, contida em matérias de jornais, de televisão, de laudos criminais e médicos, ou por meio de entrevistas com os habitantes do condado de Holcomb, com os conhecidos da família, com os investigadores do caso e, por fim, com os dois assassinos. Mas a sua escrita necessitava de algo a mais que a simples descrição dos fatos. É aí que está todo o diferencial de A Sangue Frio: a inserção da psicologia nos reflexos das personagens.
Essa tipo de meta-ficção, que parte de um argumento real e, a partir dele, propõe um novo olhar sob os referidos acontecimentos, tem uma proximidade muito forte com o cinema. “O autor deve deixar a sua imaginação correr livremente sobre os fatos”, afirmou Capote, numa frase que Fellini fez de princípio condutor de seu cinema pós-8½. E a narrativa de Capote, precisa, assustadoramente real e detalhada, reconstitui com uma concisão cinematográfica todo o mistério que envolveu o assassinato da família Clutter, desde as motivações para o crime até a morte na forca dos dois assassinos. 400 páginas que voam, e com um poder tremendo de fazer com que seu conteúdo fique na cabeça por vários dias. Vale a pena assistir também o bom filme Capote, de Bennett Miller, que conta com uma interpretação afetada e oscarizada de Phillip Seymour Hoffman no papel do escritor, e que retrata todo o período que englobou desde os acontecimentos em Holcomb até a publicação do livro, em 1966.

E só pra continuar nas paredes ensangüentadas e nos cartuchos de rifle usados, ninguém poderia imaginar que, depois de vinte anos, os Coen iriam soltar uma nova versão de Gosto de Sangue - o primeiro filmaço da dupla - com alguns minutos a menos e algumas adições à trilha sonora. E ninguém poderia prever também que o impacto do filme seria ainda maior do que quando foi lançado nos cinemas, em 1985. Naquela época, eles eram apenas dois aspirantes a cineastas num momento onde nada de realmente inovador acontecia no cenário independente (John Cassavetes lançara Amantes um ano antes, e sua veia experimental ainda não era compreendida pelo público americano, que insistia em ignorar o imensurável valor de suas obras) e uma estagnação começava a se desenhar. Foi então que, com 1,5 milhão de dólares - que na tela parece ser muito mais -, Joel e Ethan Coen fizeram seu primeiro filme, um noir com um texto surpreendentemente inteligente e mordaz.
Frances McDormand, mulher de Joel, foi escalada para viver a protagonista da história, uma mulher tranqüila que se envolve num triângulo amoroso com um funcionário do bar comandado por seu marido. Se há uma influência notável de Hitchcock e seu conceito de “homem errado”, a construção ambiental e o trabalho com os atores são elementos decisivos na concepção da narrativa. Os Coen são mestres em montar situações de extremo nervosismo e em extrair risos destas, mas aquele riso incômodo, causado por uma sensação de pleno desconforto. O tratamento dado aos personagens é de grande importância: toda a seriedade de McDormand e John Getz contrasta com o sarcasmo de M. Emmet Walsh (numa atuação sensacional) criando assim um jogo que vai muito além do envolto em diálogos. O domínio da linguagem é grandioso e a direção, mesmo iniciante, se mostra tão madura que, num ato preconizador de genialidade, os irmãos engendram uma seqüência fundamental na história, de quase 10 minutos e sem uma fala sequer (!!!), sintetizando visualmente todo o conflito da trama. E embora o DVD esteja num fullscreen horroroso, nem esse e nem qualquer outro empecilho é capaz de diminuir a força do filme de Ethan e Joel Coen.
Gosto de Sangue (Blood Simple, Joel & Ethan Coen, 1985)
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