[1:17 AM]
Ano passado assisti O Espelho, do Tarkovski, numa mini-retrospectiva que o cinema da faculdade fez em respeito ao 75º ano do nascimento do cineasta soviético. Era meio-dia, tava um calor fora do normal do lado de fora do cinema, eu não comia nada desde às 9h e mesmo assim decidi ficar até o final. Não tenho lembranças muito nítidas sobre o filme, provavelmente não saberia falar sobre nenhuma passagem em especial com um grau razoável de convicção. Mas uma cena eu não esqueço: num lindo plano aberto, em meio a uma floresta inóspita, uma casa de campo aparece incendiada, com chamas por todos os lados, em viés de se tornar ruína. Sempre achei que o fogo, quando bem fotografado, alcança uma beleza incomum em comparação com os outros elementos da natureza, ainda mais numa tela de cinema. Um dos meus desejos cinematográficos secretos é assistir Zabriskie Point num telão imenso, principalmente por aquele final alucinante.
E é justamente uma seqüência envolvendo combustão a que mais me impressionou em Sangue Negro, o filme do Paul Thomas Anderson que acabou de abocanhar o prêmio de direção em Berlim. Um jato de petróleo, cercado por uma torre de madeira, brota da terra e atinge uma altura de uns cem metros. Não demora para que ele entre em chamas e fique incandescente, para desespero da população, delírio do prospector interpretado por Day-Lewis e beleza para os meus olhos. Servindo-se de um contraste intenso entre a escuridão da noite e o brilho crepitante, a câmera de PTA explora com louvor o sombreado para retirar dele toda a densidade necessária à cena. A precisa execução da seqüência e todo aquele fogo jorrando da terra me deixaram pregados na cadeira, é para mim o grande momento do filme.
Que não deixa de ser bom, mas muito menos do que eu esperava. E principalmente devido à escolha do desfecho, onde toda a construção climática e narrativa erguida até então é abandonada em função de uma conclusão desnecessária e sem graça. A meticulosa disposição do personagem implica uma rigidez que se intensifica a todo momento, e é ressaltando as peculiaridades de um homem ambicioso e hostil que PTA ergue a linha de sua narrativa. É mais um filme de modelamento de personalidade do que qualquer tipo de épico sobre o surgimento de um império, como dizem por aí. Estamos ali observando as relações que um homem ganancioso, movido a cifras, trava com os que o rodeiam, de empregados até o próprio filho. E justamente quando foca suas pretensões na elaboração de seres fictícios é que o trabalho do cineasta realmente consegue me fascinar, mais até do que no próprio jogo interativo onde os confronta. Embriagado de Amor é o filme dele que eu mais gosto - talvez seja um dos mais bonitos da década -, e grande parte por causa do dimensionamento que dá ao personagem do Adam Sandler.
E, neste caso, estamos muito bem servidos de Daniel Day-Lewis. Sem dúvida há uma coerência bem afiada entre os propósitos de diretor e ator, que possibilita ao inglês essa encarnação possessa da figura que personifica - um pouco moldado no açougueiro de Scorsese, mas muito mais rico em minúcias e expressões corporais. Trata-se de uma atuação maiúscula de um ator essencial ao cinema. Pena que não seja suficiente em se tratando de um filme de tamanha expressividade, mas que insiste em se comportar de maneira tão pobre em seu desfecho que acaba por se ofuscar. Num duelo que destoa de todo o restante de sua estrutura, pelo excesso e pela inadequação, há a impressão de que o objetivo era beirar a paródia, ou simplesmente radicalizar a relação entre os personagens de maneira drástica. Faltou maturidade para um final mais trabalhado e significativo, mas depois de um pinto de plástico e uma chuva de sapos, nada mais me surpreende. Oscar pros Coen.
Sangue Negro (There Will Be Blood, Paul Thomas Anderson /2007)
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