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O historiador brasileiro Eduardo Bueno certamente tem muita história pra contar. Em 1978, no embalo dos vinte e poucos anos, chapado com Kerouac e seu livro libertário (aquele que fundiu a cuca de meio mundo), colocou uma mochila nas costas e se mandou para os Estados Unidos. O objetivo era refazer a mesma rota percorrida pelo escritor beat quase três décadas atrás: atravessar o país e chegar até o México de carona, usando o máximo possível de substâncias alucinógenas e mergulhando de cabeça em todo o tipo de experiência que só o convívio humano e a interação são capazes de proporcionar. Há 30 anos não era totalmente perigoso se aventurar de maneira impulsiva pelas estradas ianques, e os relatos andantes de Kerouac inspiraram muitos jovens a largar o que não tinham e a partir numa busca pelo desconhecido, pelo mistério que alimenta a juventude. Diante da possibilidade de sair de um país em ruínas, esfacelado moralmente e sem perspectiva de futuro, Eduardo fez o caminho oposto dos milhares de exilados que voltariam ao Brasil no ano seguinte, agraciados com o perdão da anistia. Ele iria para o Santiago de Compostela underground, da curtição e da tríplice sexo, drogas & improviso. Kerouac dizia que todo homem precisa viajar, rodar o mundo para conhecê-lo com os próprios olhos, e não através de imagens ou relatos de terceiros. É preciso se envolver, se permitir dinamizar com o ambiente e com aqueles que o ocupam. O sentimento de libertação que a estrada sugere faz com que o destino final seja sempre aquele lugar inexplorado dentro de nós, um ponto escuro esperando pelo momento certo em que será ativado. A partir dessas e outras tantas digressões acerca da liberdade, dá para se ter uma idéia do porquê de o cara ter voltado para o Brasil embriagado de Kerouac. A sensação de não ter destino, de se desamarrar dos compromissos sociais e de todos os imbróglios do dia-a-dia era tão boa que algo precisava ser feito. O primeiro passo era transmitir tais ideais para o maior número possível de pessoas. O que não deixou de ser uma tarefa das mais ingratas, já que até então o livro não havia sido lançado por aqui. Foi assim que, com a colaboração de Antônio Bivar, On The Road chegou ao Brasil. A primeira tradução, assinada pelos dois, é de 1984 e vem com o subtítulo Pé na Estrada. Mas se o som que era a trilha do livro e fazia a cabeça do escritor americano era o jazz, Bueno pirava quando ouvia Bob Dylan. O fascínio era tanto que o cara colheu uva durante 3 semanas na Europa para ver Dylan ao vivo. Tentei algo do tipo na Prado Júnior com o mesmo objetivo semanas atrás, mas não tive sucesso e ainda não entendi o porquê. Mas, como eu dizia, quando Dylan veio ao Brasil, em 1990, Bueno foi até o hotel para tentar um contato com o ídolo. E conseguiu. Através de muita conversa e da inteligência peculiar de quem escreveu uma biografia dos Mamonas Assassinas, Bueno esteve por um momento incumbido de uma tarefa restrita a um grupo seletíssimo de pessoas: a de acender e passar um baseado para Bob Dylan. Ao consumar o fato, o historiador estava evocando um ritual que já fora presenciado por gente da estirpe dos Beatles. Estar ali era compactuar com a personificação da poesia, da contracultura, do rock’n’roll e de toda a essência turbulenta e insurgente dos anos 60. Judas. E quem não gostaria de se sentir o Paul McCartney pelo menos uma vez na vida? A amizade fora travada com Victor Maymudes, à época empresário e mentor de Dylan. Mas, no ano seguinte, dois dias antes do show que fez em Porto Alegre, Dylan saiu para caminhar pelas ruas da cidade com Bueno, Maymudes e um segurança. Assim, desse jeito. Um rolé. Foram ao morro de Santa Teresa ver o pôr-do-sol e fumar um, para depois matar a larica na barraca 40 do Mercado Público. Se o momento não foi retratado em I’m Not There, é porque trata-se de só mais uma amostra do que é ser Bob Dylan e das conotações por trás desse nome. E também não diz respeito a ninguém que não seja o próprio Bueno. Tanto por isso que a relação com ídolo é motivo de silêncio, quase nada se sabe sobre o que se passa quando se encontram. E, lendo a biografia do homem, intitulada apenas Dylan e escrita por Howard Sounes, dá pra perceber que o brasileiro não é o único a optar pela omissão respeitosa quando se trata de Bob Dylan. Mesmo assim, quando é abordado sobre a intensidade do sentimento que nutre pelo judeu de Minnesota, Bueno não esconde e dá até entrevista para o Jornal da Globo cunhando frases marcantes e elogiosas sobre o ídolo. É ele também quem assina o posfácio do livro Crônicas - vol. 1, o primeiro de uma trilogia autobiográfica assinada pelo roqueiro e lançada por aqui há uns três anos. Eu, que tenho poucas chances de vê-lo tocando ao vivo no sábado, me contento com essas e outras saudosas histórias para trabalhar a imaginação e recriar momentos que, errônea e infelizmente, ainda não foram vividos. E fico cada vez mais satisfeito em saber que meus verdadeiros heróis ainda não morreram de overdose, e que estão sempre pintando por aí, como os melhores mistérios da vida. Just like a woman.
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