[10:16 PM]
É engraçado como certas coisas nunca mudam. Todas as vezes em que ligo a televisão e me deparo com Alta Fidelidade passando, não importa o tempo decorrido de filme, vejo-o até o fim. Hoje, por sorte, peguei-o quase do início e não quebrei a tradição: fui com prazer até os créditos finais, mesmo já tendo visto integralmente umas 6 ou 7 vezes e sabendo de cor e salteado certos diálogos e seus devidos tempos. E, ao fim de cada sessão, prometo à minha lista de livros já lidos que não vai demorar para que o nome de Nick Hornby passe a visitá-la com maior freqüência, fato esse – obviamente, como muitos outros - nunca concretizado. O negócio é que vejo no filme de Stephen Frears uma qualidade que se tornou cada vez mais escassa no cinema moderno desde que Tarantino surgiu e se firmou com Pulp Fiction: a capacidade de balancear niveladamente uma história que se sustenta não só pelo que traz de referencial, mas principalmente pelo conteúdo que representa e pelo modo como este é encenado.
Frears absorveu bem toda a avalanche musical presente no livro do escritor inglês, mas não esqueceu de que a trilha sonora existe como peça complementar do filme, sendo antes um instrumento cênico do que o principal motivo de existência da narrativa – ao contrário do Cameron Crowe, por exemplo, que parece se satisfazer com qualquer bobagem apenas para desfilar suas preferências musicais para os espectadores. Há, em Alta Fidelidade, vários fatores responsáveis pela empatia com que recebo o filme todas as vezes: a crise da meia-idade de um garotão e sua incapacidade social, o cargo de dono de uma loja de discos antigos, os amigos restritamente ligados à música e todo o universo que a acompanha, os foras das namoradas e a necessidade de encontrar um motivo para estes, suas dezenas de deliciosas listas, para tudo e para todos e, por final, os monólogos direcionados exclusivamente para a câmera, reiterando a identificação através desse mecanismo informal. É quase um papo de boteco sobre mulheres, desilusões e música.
A dinâmica do filme está numa montagem esperta, porém contida, longe dos malabarismos visuais à MTV, direcionada a equilibrar os meios condensando todos esses elementos citados acima e os recheando com um som da melhor qualidade, dentre eles Velvet Underground, Bob Dylan, Elvis Costello, The Kinks, Love e The Beta Band. Todo esse conjunto adicionado à interação entre os personagens não poderia ter dado um resultado melhor: Jack Black está hilário e comete sua melhor atuação, servindo sempre ao personagem e sem a vontade de tomar o filme para si; John Cusack foi a escolha ideal para recriar as instabilidades do arquétipo do jovem do século XXI, bem colocado e com boa inteligência mas que ainda sofre do mais antigo dos males, o das paixões não-correspondidas; e todos os outros coadjuvantes, de Catherina Zeta-Jones (gostosíssima vestindo uma camiseta dos Pretenders e só) a Joan Cusack, numa boa e especial participação. E, mesmo que não atingisse o ótimo resultado que alcançou, o filme valeria só pelo prazer de procurar por cartazes ou capas de discos conhecidos nas prateleiras da loja e se deparar com preciosidades como Blonde on Blonde ou até mesmo o nosso e essencial Tropicália ou Panis et Circensis, numa rápida e desfocada participação especial.
* * * Uns dias atrás, folheando umas revistas antigas, me deparei com um artigo sobre Hitchcock e fui acometido por uma vontade irrefreável de voltar ao cinema do gordo inglês, depois de um hiato de não sei nem quanto tempo. Como meu vídeo não está funcionando por motivos que cabe ao além explicar, fiquei impedido de ver alguns menos conhecidos do Hitch cujo alcance em VHS ainda me é mais acessível (é mais fácil ser encarado como limitação financeira do que saudosismo, acreditem), acabei então recorrendo a Disque M Para Matar, grave falha que eu cometia em se tratando da cinematografia do homem. É o primeiro filme dele em parceria com Grace Kelly e também o primeiro onde não consegui encontrá-lo na tela de primeira e sem leitura prévia, mas agora sei que sua figura aparece lá pelos doze minutos numa improvável fotografia.
Ambientando seu filme em praticamente um cenário, Hitchcock é sintético como a primeira frase dos romances de Kafka e entrega todos os pontos que mais tarde serão desenvolvidos já nos primeiros minutos da trama. Há um homem, uma mulher e um crime a ser cometido, e, para que ele se efetue, existem peças que vão se encaixando à medida em que as particularidades das personagens vão sendo moldadas. Não escapa de certa previsibilidade a partir do momento em que o roteiro dá espaço para que algumas teorias encontrem aceitação e sejam validadas, e lá pelas tantas todos sabemos o que vai acontecer. O diferencial neste caso está na maneira com que Hitchcock estabelece uma relação espacial entre os corpos que interagem entre si e cujas propostas se opõem em diversos momentos, e como o faz através dos movimentos de câmera e através de uma iluminação primorosa. Não está entre os grandes filmes dele, mas só o travelling que precede a tentativa de assassinato já mostra o domínio que Hitch exercia sobre seu instrumento de trabalho e que me encanta a cada novo filme.
* * * Nem toda a esmerada ambientação e o minucioso trabalho de construção climática, seja através das luzes, da trilha sonora ou da formação das personagens salvou Suspiria de ser uma decepção quando o assisti pela primeira vez. Mesmo com um fiapo de enredo, o filme está longe de ser ruim – pelo contrário, é bom, mas decepciona -, mas o fato de se sustentar por tantos anos como referência do gênero me fez pensar numa obra-prima do apocalipse, só que o que aconteceu está mais para esboço do que para um projeto de clássico. A qual fonte, então, pertence a água que Dario Argento bebeu para montar sua obra mais famosa? Volte a 1963 e encare Black Sabbath, de Mario Bava, pois está tudo ali.
Bava fragmentou seu filme em três contos, chamou Boris Karloff para narrar a introdução e para atuar em um deles. É certo que um filme dividido em três corre riscos de se tornar incoerente, de perder o espectador por meio da rítmica das histórias, e de se esconder através de um roteiro falho, mas felizmente não é o que acontece neste caso. O primeiro episódio emula os melhores momentos de Hitchcock, trazendo uma tensão que se agrava a cada toque do telefone e que é refletida no olhar pulsante de Michèle Mercier, um pitéuzinho. Bava, ao contrário de Argento, alia um tremendo senso de construção do medo, através das luzes que projeta sobre seus atores, dos sons que extrai do ambiente (principalmente do toque estridente do telefone) e dos impressionantes movimentos de câmera dentro do cômodo no qual o episódio se passa, com uma dinâmica conceitual que se diferencia nos três momentos do filme.
Meu conto preferido é o terceiro, com luzes que claramente influenciaram o trabalho de Argento, e que dispõe de um interessante jogo de consciência muito ligado ao psicológico e mesmo assim ricamente ilustrado em situações assustadoras. Um filme que alcança a excelência em sua encenação do medo através de imagem, de luz, de som e, principalmente, de conteúdo.
Alta Fidelidade (High Fidelity, Stephen Frears /2000)
Disque M Para Matar (Dial M For Murder, Alfred Hitchcock/ 1954)
Black Sabbath (I Tre volti della paura, Mario Bava /1963)
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