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Scorsese sabe que o conceito estrutural de um show dos Stones possui semelhanças com a armação de um concerto de jazz: parte-se de um ponto fixo, que fica por conta de um repertório prévio e de uma noção básica de encenação, mas o que realmente dita o ritmo e garante o espetáculo é mesmo o improviso. O percurso até o destino final é uma incógnita voltada exclusivamente para a experiência. No caso de The Rolling Stones – Shine a Light, temos a performance de uma banda que há quarenta anos faz um rock’n’roll autêntico, vibrante e com muitas firulas, principalmente por conta do rebolado enérgico de Mick Jagger. Scorsese disse não ter tido acesso ao repertório do show até minutos antes de seu início, a solução então foi ligar suas câmeras e deixar que as pedras rolassem por conta própria. E o resultado final é um filme de grandes qualidades e que pulsa jovialmente a cada seqüência musical. A começar pelo vigor dos caras, que impressiona qualquer um - não fossem as rugas expostas a todo momento na tela, podia-se julgar que, no palco, os Stones (e principalmente Jagger) não envelheceram. A simpatia com o demônio pôs em negócio a alma dos quatro ingleses, que em troca receberam a garantia de uma descarga elétrica que parece não ter fim. E é por isso que os Stones, ainda hoje, são os maiores e os melhores no que fazem.
A sessão foi praticamente particular. Eu e meu pai na companhia de mais um roqueiro solitário, três cabeças diante daquele jorro de guitarras e luzes, de vibração corporal, de quatro décadas de estrada, de constatação de uma velhice que parece não ter se consolidado. Os Stones estão velhos, e como envelheceram bem! Keith Richards alcançou um patamar solitário no panteão da música, é o rock’n’roll por excelência, a personificação de um estilo próprio que ele fundou e que ainda não produziu seguidores. Seus gestos, suas expressões, o modo de se vestir, de se mover no palco, o cigarro cuspido com violência no chão, todos esses fatores mostram porque o cara é o maior bad motherfucker de que se tem notícia. E Scorsese registra todas essas facetas icônicas com um time de fotógrafos de primeira linha, fazendo com que os enquadramentos do filme se tornem verdadeiras pinturas de antologia. Aliás, sensacional o resgate de Connection com Keith nos vocais, acabou sendo o meu momento preferido do filme, ao lado de All Down the Line e da participação poderosa de Buddy Guy.
E não importa o cenário, seja a praia de Copacabana ou o Beacon Theatre; nem o tamanho do público, 1,5 milhão de pessoas ou os 500 sortudos que presenciaram os dois shows, o barulho que aqueles quatro senhores conseguem fazer em cima do palco ainda é alto, muito alto, “play it LOUD!” é o lema. A escolha do repertório não deixa nada a desejar, 18 canções dos anos 60 e 70 (sendo quatro delas do maior dos discos de rock), três dos anos 80 e nenhuma de 1990 pra cima. A peneira foi inteligente e felizmente soou saudosista, mas Scorsese me surpreendeu com a ausência em particular de Gimme Shelter, figura tão presente em vários de seus filmes. É óbvio também que muita coisa boa ficou de fora, mas com a imensa discografia dos Stones à disposição é possível que se faça, no mínimo, uns três set's só com lados B e faixas que não entraram no repertório final e que ainda assim garantiriam um showzaço. Mas bastam os acordes iniciais de Jumpin’ Jack Flash para arrepiar qualquer alma viva, do cóccix até o pescoço, e a constatação de que o que me resta é somente voltar ao cinema mais umas duas vezes e agradecer ao demônio por um excelente serviço prestado à humanidade.
The Rolling Stones – Shine a Light (Shine a Light, Martin Scorsese, 2008)
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