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Três fragmentos de Johnny Guitar (Nicholas Ray, 1954) presentes em grandes momentos da literatura brasileira  - Uma das ferramentas utilizadas por Nicholas Ray para exteriorizar o emocional de seus personagens é a indumentária. Em várias cenas, as cores das roupas usadas por Joan Crawford e Mercedes McCambridge sinalizam marcas da tensão que atravessa o confronto entre as duas mulheres do Oeste. A mais emblemática de todas acontece já perto do final, quando o embate visual ocorre de maneira diametralmente oposta: Joan, de vestido branco, toca piano calmamente enquanto o mundo desaba à sua porta (em um momento belíssimo que sintetiza o filme), ao passo que McCambridge, recém-saída de um funeral, desfila com a morbidez de um pano preto, transcendendo assim os limites do conflito. A partir dessa particularidade, impossível não lembrar dos cínicos choques verbais entre Alaíde e Lúcia, as irmãs diabólicas e devidamente trajadas a rigor de Vestido de Noiva, peça de Nelson Rodrigues que também tinha a vestimenta como peça fundamental de sua narrativa. 
- John Carradine, que interpreta o discreto funcionário do Saloon de Joan Crawford e se auto-intitula como “parte da mobília” do ambiente, está para morrer. Cercado de pistoleiros curiosos que o observam agonizar no centro de um círculo, confessa: “Todos estão olhando para mim. Pela primeira vez na vida me sinto importante”. E são estas suas últimas palavras, assim como são também similares ao derradeiro respiro reflexivo de Macabéa, a retirante indigente do romance A Hora da Estrela, de Clarice Lispector. Vivendo às margens da sociedade e destinada à tônica do esquecimento, só quando caída na rua após ser atropelada, estando assim no centro de atenção dos passantes, é que Macabéa realiza seu desejo de se tornar conhecida, de atingir sua tão esperada hora de estrela de cinema. 
- Ninguém quer se responsabilizar pela morte de Joan Crawford, montada em um cavalo e com a corda no pescoço. O que falta é coragem aos pistoleiros para dar a chibatada que colocará o animal para correr e suspenderá o corpo da mulher no ar. “Não com uma mulher”, diz o delegado da cidade, fazendo coro aos demais que passaram a batata quente para o companheiro do lado. Até grana eles recusam, sob a alegação subentendida de que a mulher e a forca são como o sagrado e o profano, seres imiscíveis, e ninguém ousa colocar a honra em cheque tocando na ferida das heresias. Imediatamente a cena me remete às ruas do Recife, em 1825, e a sentença de enforcamento do Frei Caneca, que não se cumpre por falta de mãos que hesitam em puxar a corda. Recriada na prosa poética de João Cabral de Melo Neto em O Auto do Frade, a história do religioso que não encontra em nenhum carrasco, militar, presidiário e até mesmo em réus perpétuos (“diz que matar padre é morte que recai, veloz”) coragem para sua execução ecoa neste filme de Ray, com um desfecho inevitavelmente oposto mas com a mesma carga simbólica de significados.
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