[11:44 PM]
“Dorival Caymmi, vocês sabem...”
João Gilberto sabe que as palavras são como rodinhas de bicicleta: você não usa se não precisa. Gostaria de ter tido disposição para madrugar nas filas do Municipal com o intuito de garantir ingresso para a apresentação única do velho no Rio, mas meu espírito aventureiro do bairro proibido parece só funcionar depois do jogo de quarta-feira e olhe lá. O jeito foi me contentar com o ruído da agulha raspando a superfície riscada do disco En México, da época em que ele ainda ostentava um lustroso bigode à Seu Madruga e compunha suas próprias canções. Ainda hoje gosto de ouvir o canto tímido do João, mesmo quando sua arte se restringe ao máximo da síntese e abre mão de arranjos orquestrados para reproduzir com notável vigor o jargão máximo da bossa nova: um banquinho e um violão. Comprei, há um tempo, em CD, dois discos minimalistas do homem que reproduzem as mesmas canções manjadas de sempre e mesmo assim se sustentam de maneira singular devido à lapidação que os anos proporcionaram ao diamante exposto domingo passado no palco do Municipal. A versão de Lígia do In Tokyo, de 2001, é a mais bonita que eu já ouvi, superando até mesmo o dueto do Roberto com o Jobim para o especial de 1978 e outras interpretações do Chico, do Tom e do próprio João. E foi com a frase que abre esse post que o homem do sussurro embriagante lembrou, com entonação de reverência, do baiano que lançou o acarajé e o dendê para o mundo com a mais simples das perguntas: Você já foi à Bahia? * * *
Ainda na seara musical mas já com um pé no cinema, assisti ontem, pela primeira vez, o documentário que Jom Tob Azulay realizou em 1976 depois de acompanhar a turnê que o grupo formado por Maria Bethânia, Gal Costa, Gilberto Gil e Caetano Veloso fez por algumas cidades brasileiras no ano citado. Os Doces Bárbaros é ótimo, atemporal e vale também como registro histórico de um momento em que a cultura mundial estava em plena efervescência e cuja recepção aqui no Brasil se dava também através de uma turma que gravitava em torno das contribuições artísticas desses quatro cavaleiros do após-calipso. É interessante notar que, mesmo numa dinâmica até então desconhecida (um grupo propriamente dito), as personas individuais que conhecemos hoje estavam muito bem modeladas já naquela metade dos anos setenta: a relação entre a imprensa e os irmãos Veloso sempre foi erguida sob um clima de tensão constante; enquanto Caetano joga com as palavras com o intuito de manipular as perguntas e, por conseqüência, os repórteres, Bethânia se mostra impaciente e não hesita em adotar a máxima da “pergunta idiota, tolerância zero” em nome de suas próprias verdades. Gil, à época mais emaconhado que nunca (o filme até perde um pouco o ritmo quando envereda nos desdobramentos causados pelo fato de ter sido preso com um beque na carteira, em Floripa), é o mais boa-praça, mesmo quando começa a discursar e não percebe que só ele entende o que fala. Já Gal era linda, gostosa e cantava demais. Pena que morreu cedo. Dois grandes momentos do filme: Gil cantando Quando, música coletiva que o grupo fez em homenagem à Rita Lee (ííh...), um barato total; e os quatro ensaiando Peixe, composição de Caetano que acabou entrando na trilha do Sítio do Pica-Pau Amarelo e é uma das minhas preferidas do disco. Aliás, a Jana me deu o vinil duplo há uns cinco anos achando que era dos Novos Baianos e desde lá eu conto nos dedos as vezes em que o ouvi por inteiro. Do grupo, ainda prefiro Temporada de Verão, gravado na Bahia em 74 e sem a presença de Bethânia, mas com músicas lindas que compensam a ausência da nossa Capitã Caverna: Quem Nasceu, De Noite na Cama, O Conteúdo, Felicidade, O Sonho Acabou, Cantiga do Sapo e outras mais. Vale a ouvida. * * *
E como só vejo o novo filme do Mojica amanhã à tarde (minhas expectativas tão muito altas, adoro os dois primeiros da trilogia, em especial À Meia-Noite Levarei Sua Alma), vou deixar para escrever sobre esse acontecimento - independente de sua qualidade - no decorrer da semana. Vi esses dias Foxy Brown, do Jack Hill, uma das mais óbvias inspirações do Tarantino para conceber o seu Jackie Brown, que, além de ter a mesma Pam Grier e seus belos peitos como protagonistas, ainda usa os mesmos letreiros de abertura do filme de 1974 e também trabalha suas personagens em cima da subversão da hierarquia racial. Aliás, agora eu sei de onde vem a afetação do personagem de Chris Tucker: Antonio Fargas já tinha criado as raízes da personagem no filme original, só que sem as roupas e aquele cabelo esquisito-extravagante. Depois de Russ Meyer, agora é hora de ir atrás de outros filmes do Hill.
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Os vizinhos já sabem que a onda agora é soul, baby, soul. E enquanto meus banhos vão ficando cada vez mais animados e afinados, vai aí uma coletânea de músicas de Northern Soul da Motown que eu mesmo subi (livre de vírus, fica tranqüilo) com muita coisa boa: Goodbye Cruel Love na voz de Lina Grier, Frank Wilson mandando Do I Love You, Crying in the Night com os The Monitors e uma versão arrasadora de He’s All I Got com as meninas do The Supremes. Coisa fina, pra balançar o esqueleto no chuveiro e irritar os vizinhos. Existe coisa melhor que isso?
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