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No panteão do terror brasileiro a entidade suprema é Zé do Caixão, coveiro maldito que surgiu há cerca de quatro décadas atrás sob as unhas de um autêntico soldado de guerrilha que atende pelo nome de José Mojica Marins. São poucos os combatentes dessa resistência, homens que ainda acreditam na força das imagens como maneira de se documentar a história de uma cultura e de um povo. Talvez por isso Encarnação do Demônio seja dedicado a Jairo Ferreira e Rogério Sganzerla, que, assim como Mojica, são pontas-de-lança de uma armada que defende nosso subdesenvolvimento como forma de se inserir e se auto-caracterizar no mundo. Não há mal nisso, desde que os filmes continuem a existir ou simplesmente passem a me provar o contrário, fato este que felizmente ainda não aconteceu. Fica evidente a marca da indignação em cada seqüência da trama: Mojica parece expiar a raiva que o limbo de 40 anos reservou ao grande personagem de seu cinema com uma direção pulsante, que não esconde a necessidade de lançar o olhar para o passado antes de estabelecer um confronto com o futuro. É por isso que seu filme marca um momento de grande importância para essa retomada que o cinema brasileiro vem sofrendo desde meados dos anos 90. O velho sabe que é preciso recorrer aos filmes de ontem e livrar a cabeça de amarras institucionais para se produzir o famigerado cinema de gênero que nosso país parece se negar a produzir a todo instante. Só assim, assumindo nossa incapacidade e usando-a como benefício no ato da criação e da execução artística, é que o ensaio da mudança se dará. E é por isso que o cinema de Mojica dá um novo vigor à nossa memória cinematográfica, por apostar em suas próprias origens como meio de impulsão para se trabalhar com o moderno a ponto de se tornar forte o suficiente para aceitar os choques temporais e todas as outras tempestades que a indústria acaba por fazer cair nas nossas cabeças cortadas.
Encarnação do Demônio atualiza a figura do coveiro Josefel Zatanas e conclui uma história que começou com a censura do governo militar, nos idos de 1966, e atravessou muitos períodos até encontrar seu desfecho. Mojica então se juntou a uma turma raivosa para ressurgir com seu personagem no Brasil contemporâneo, o país dos travecos, das crianças que cheiram cola nas ruas, da polícia corrupta e de metodologia arbitrária e de uma população que mais do que nunca se prende às suas crenças religiosas em favor de uma alienação ilusória, abdicando totalmente da racionalidade como forma de libertação. O filme se sai bem por incorporar ao seu cardápio de códigos a violência extrema filmada de maneira anti-convencional (ao menos para os padrões atuais), onde mais importante do que fazer do espectador um voyeur é a necessidade de convencê-lo da veracidade dos fatos, através de um olhar que não está interessado em buscar cúmplices, e sim em corroborar o poder e a extensão de uma imagem. Questão de recepção, bicho, Mojica é esperto o suficiente para não subestimar seu público. É uma pena que a recíproca não seja verdadeira, pois, mesmo com o teor carregado de certos diálogos do Zé do Caixão que acabam por deturpar um pouco o ritmo das atuações (e, por conseqüência, da narrativa), seu filme representa o cinema brasileiro se retratando com seu passado da maneira mais amistosa possível, com um aperto de mão desajeitado devido às unhas assombrosamente grandes. E sujas.
Encarnação do Demônio (José Mojica Marins/2008)
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