[8:28 PM]
 Assim como a interrogação que envolve a célebre questão sobre a fidelidade de Capitu no romance de Machado de Assis, diversas são as interpretações para os fatores que fazem com que Camille passe, de uma hora para outra, a substituir o amor que nutria pelo marido por um desprezo até então dado como oculto em sua dinâmica conjugal, no mais complexo olhar sobre o cinema já registrado em película. A minha visão não foge muito do tradicional: vejo como cena chave do filme aquela em que a personagem de Brigitte Bardot se encontra pela primeira vez com o produtor no Alfa Romeo e tem sua presença negociada através de um jogo de concessões entre o roteirista e o produtor, logo no início da história. O olhar fulminante de Brigitte, já dentro do carro, não dura mais do que dois segundos, mas é suficiente para exercer a inversão que marcará todo o tom antitético do filme. Sendo o cinema uma arte onde se pode manipular a imagem e praticar a desconstrução do nosso senso de realidade através de um conjunto de signos de linguagem própria, nada como engendrar um roteiro metalingüístico elaborado através de relações de poder, de pequenas políticas que delimitam territórios e instituem à cada qual a atuação dentro de seu respectivo meio. Todos os corpos em cena se chocam por causa do poder: o produtor e Fritz Lang (belíssima seqüência: na saída da cinemateca, após sessão de Viaggio in Italia, Lang dispara: "Posso viver muito bem sem um produtor.") encenam a tensão que se estende para o comportamento da secretária, tensão esta que marca também o relacionamento entre o produtor e o roteirista, entre este e o diretor, entre ambos e Camille e, em maior escala, entre Camille e seu marido, naquele que é o mote principal do filme: um olhar abrangente calcado numa teia de ambigüidades sob como se desenvolve e se desintegra um relacionamento dentro do mundo do cinema.
O Desprezo é um filme cuja fama precede qualquer opinião que se tenha a respeito de seus significados, talvez por isso eu tenha esperado tanto tempo para inseri-lo em meu mundo. Já havia visto vários outros do Godard desse período, mas sempre ignorava O Desprezo por achar que ainda não estava pronto para as questões que ele propunha. Resolvi deixar essa viadagem de lado no último fim-de-semana, e é óbvio que tal magnitude se confirma em toda sua extensão: não só é o registro de maior lucidez e complexidade sobre o cinema como também sobre qualquer ensaio de relacionamento que se tencione por aí. Godard dispõe de artifícios estilísticos para não soar óbvio em momento algum, envolvendo os personagens da narrativa numa nuvem de incompreensão que alcança ares de tragédia a partir de certo momento, onde, depois de desenrolado o novelo, o fluxo do que se perdeu se torna irreversível. Mas o que se perdeu? A tênue faixa que conecta a profissão ao sexo é também aquela que se posiciona entre o amor e o desprezo, e o trágico é inevitável quando o rompimento de tal linha se anuncia. Este é o filme obrigatório para todo casal que não entende os porquês do outro, um exemplo ideal onde a arte reproduz a vida de modo que nossos conceitos passam a ser repensados e redefinidos desde então, principalmente em relação ao cinema. E digo mais, já apelando: sou um ser humano muito melhor depois do contato com essa obra - nada como duas sessões seguidas em um fim-de-semana onde Brigitte Bardot reinou soberana sob minhas retinas em todos os cômodos da casa.
P.S.: A Débora viu o filme nas derradeiras sessões do Cine Paissandú, há uns dias, em seu cinemascope original, numa tela que dizem ser gigantesca - e não achou nada demais. Não sei se ela lê isso aqui, mas eu recomendo fortemente que reveja o filme em um dia melhor, de sol alaranjado, já que a revisão dos conceitos de vida (que nesses casos é o ideal a se fazer) demora demais e não é tão prazerosa quanto esses 100 minutos.
O Desprezo (Le Mépris, Jean-Luc Godard /1963)
|