[1:22 AM]
Brigas, chuva, metrô, Mal dos Trópicos.
O sábado não podia ter começado de maneira mais inadequada, com momentos que não valem a pena comentar e um frio que me fez querer passar bem longe do chuveiro. Mas nada como uma caminhada para aliviar o pensamento, colocar as idéias em ordem e respirar um pouco o cheiro de chuva das ruas do Rio. O vagão do metrô lotado de flamenguistas indo ao Maracanã ver a vitória contra o Sport e eu já pensando que, mais uma vez, não conseguiria chegar para o filme antes das luzes se apagarem (coisa que detesto, só pra deixar claro). Não deu outra, entrei na sala poucos minutos após o início da projeção, suado e inquieto, mas bastou uma caminhada pelo mato selvagem para reter a transpiração e adentrar no universo aparentemente desconexo concebido por Apichatpong Weerasethakul. O que pude enxergar foi uma criação genuinamente carregada de elementos que se contrapunham a todo instante, alinhando uma lógica barroca a uma desconstrução da narrativa convencional, linear, aquele papo certinho de sempre, a fim de alcançar a ruptura das convenções através do choque provocado pelo desconhecido. É a oposição constante, entre corpo e alma, cidade e campo, barulho e silêncio; um mecanismo que converge na antítese que toma conta de grande parte do filme: o conflito entre homem e animal, que se dá de maneira ascética e corrobora a opção por uma sutil subversão conceitural ao não propor o enfrentamento, e sim a soma das partes. Ao final, ambos são um.
Tenho especial apreço por cineastas que se propõem a registrar o espaço geográfico - seja ele urbano ou rural - de modo a realçar toda a poesia que passa despercebida por nós no cotidiano. E Apichatpong transforma um passeio de moto pela cidade em um evento transformador de puro escapamento na vida de suas personagens, pavimentando a imersão total em um plano próprio, de torpor pessoal para dois corpos que se relacionam de maneira indefinida. Todas minhas expectativas se confirmaram, se excederam, me conduziram a um tipo de experiência pela qual ainda não há fórmula de descrição, bula, nada. É o cinema, puro e simplesmente. De onde surgiu aquele tigre na árvore, a fita do Clash, a árvore iluminada por vaga-lumes? O que esperam todos aqueles que atravessam a tela perdidos nas duas esferas pelas quais transitam isso a que nos referimos como corpo e alma? A ode à contemplação nunca foi arquitetada com traços tão singelos - como versos de um poema de Rimbaud, onde a cor e a beleza se encontram mais na disposição e no suprimento das palavras e menos no que elas de fato significam.
A noite terminou com A Fronteira da Alvorada, novo filme do Philippe Garrel, naquela que foi minha estréia no Festival do Rio. A primeira cena, com Louis Garrel andando pela rua, sugere uma conexão com Amantes Constantes, tanto pelo preto & branco marcante como pela idêntica elaboração visual do personagem e pela atmosfera decadente das ruas francesas. Mas as relações se limitam à reflexão sobre relacionamentos impossíveis e amores efêmeros, com poucas referências aos esquetes revolucionários que marcavam o compasso da obra anterior do cara. Não deixa de soar irônico que um filme cuja essência está no olhar sobre as relações interpessoais seja conduzido com tanta frieza, com um distanciamento que se arrasta pelas camas e parece esquecer que não só de olhares furtivos vivem os amantes. Começa bem, num jogo de corpos que a câmera observa sem pudores, mas depois de um certo momento parece que Garrel perde as rédeas de comando do filme que vinha encenando e passa a exlporar os desdobramentos que cercam o desfecho da união (numa culpa que se inicia com o desenvolvimento do roteiro e de modo inevitável se estende para a encenação), inserindo um elemento metafísico que se desloca por completo do tom inicialmente projetado, chegando a causar reações inesperadas na platéia. Muito mal elaborada a personagem da loirinha francesa, que, exercendo funcionamento primordial na engrenagem do filme, acaba por destoar do restante da narrativa com sua histeria comportamental e finda por comprometer todo o restante da história. Não me espanta que tenha sido mal recebido em Cannes este ano, está realmente num plano muito inferior ao real talento de Garrel.
Mas tenho certeza de que dormirei feliz, como uma múmia egípcia, madrugada adentro. Depois de presenciar uma árvore em plena efervescência luminosa, não há mesmo como ser diferente. E agora sei que o fato de eu sempre ter curtido o Sagat não é mera coincidência... Valeu, Tailândia.
|