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Acho engraçado quando leio por aí, em alguma crítica ou resenha descompromissada, que tal filme ou livro não chega a lugar nenhum. Que vai do nada ao nada. Culpam o que muitas vezes é uma opção de recorte e se justificam com argumentos tão convincentes como preguiçosos. Parece que o último filme da Lucrecia Martel, A Mulher Sem Cabeça, foi vaiado em Cannes esse ano, e a acusação de alguns críticos se baseou no fato de que nada foi dito, de que não existe porto onde Martel ancore as pretensões de seu barco. Conversa fiada. Como alguém pode exigir sentido e coerência de uma obra de arte, sendo que abrimos mão de toda a compreensão do mundo em que vivemos e simplesmente nos deixamos levar pelo encadeamento indiferente do dia-a-dia? Acredito que a existência de uma representação artística se concretiza principalmente quando se dissocia de fatores externos, políticos ou não, reafirmando-se de acordo com os conceitos que propõe e destrói, simultaneamente. Por isso que o filme bateu com tanta força na minha cabeça, por representar a opção de se impor enquanto instrumento artístico ante a necessidade de causar reflexão, de traduzir o vazio que preenche o homem contemporâneo inserido na atual sociedade pós-moderna e etc. Camisa-de-força estética? Cada um com seu cinema, sua visão de mundo e respectivo quadrado.
O Pântano eu assisti logo no começo da cinefilia, um ano após seu lançamento, em 2002 (portanto, com 15 anos), e me lembro muito mais de especificidades do que do filme em si: o calor argentino, a piscina, o lodo e o tombo da escada, já no final. Idéia de imobilidade, estagnação, um espaço de maior abrangência para a interpretação do sufoco como metáfora - preciso revê-lo antes de desenvolver qualquer outra coisa, só que só daqui uns dias (aliás, a única cópia que existe é essa tosca em fullscreen?). A Menina Santa é o corpo em primeiro plano, o eterno conflito barroco entre alma e carne em personagens inundados de sentimentos, manifestando-se através do jogo entre repressão e expressão, a ponto de explodirem em cores vivas e quentes que os limites da pele quase sempre acabam por reprimir. É o cinema do extra-tela, em que a insuficiência do quadro na organização e no suporte dos corpos em cena é aproveitada através de uma rigorosa opção pela arquitetura do plano, onde, convenhamos, está o principal talento da Lucrecia: a mulher encena bem pra cacete. A posição de cada objeto em cena se dá de maneira deliberadamente geométrica, quase teatral, a ponto de favorecer a textura dos personagens com um esplêndido trabalho de luz e som. Se nos dois primeiros filmes há a pluralidade de corpos se chocando, organizando-se com o mínimo possível de toque, A Mulher Sem Cabeça centraliza seu foco em apenas um, o de Verônica, a protagonista estuporada. A inércia de Verônica atravessa as margens da narrativa a ponto de transcender para a forma do filme, lento, contemplativo, de poucos diálogos. Volta-se para o íntimo como arma de defesa contra o inconsciente que a faz crer ter cometido um assassinato.
Existe, no filme, um reprocessamento de códigos de gênero que atravessa diversos terrenos e não se fixa em nenhum: com seu rastelo em mãos, Martel corta o espaço e introduz nele um elemento que mais se aproxima do suspense, trabalhando justamente com a idéia de iminência, a ameaça que precede o acontecimento, mas que não chega a se concretizar. Embora o viés hitchcockiano perpasse toda a narrativa, não há como negar uma tendência do filme ao sobrenatural, principalmente nos trechos próximos do desfecho; e ao drama existencial, embora seja no mínimo irresponsável atentar para qualquer classificação que restrinja o alcance da obra. Martel está ali, em todas as seqüências, em cada enquadramento que oculta a cabeça de sua protagonista e no mais disfarçado movimento respiratório de seu organismo, e vem daí muito da força de seu filme: o mergulho da cineasta em seu estilo de fazer e pensar cinema no universo paralítico da protagonista, abrindo mão de linearidade, de movimento, de um fluxo discursivo de idéias para pinçar a imposição da mente sobre o corpo de uma forma poética, polindo cada frame com rigor e extraindo o máximo de cada componente que passeia pela tela. A opção pelo cinemascope ainda não é suficiente para agregar todo o imaginário ambíguo que marca o compasso da narrativa, ainda que a exploração do espaço confirme a cada fotograma o talento da argentina e o olhar curioso de sua câmera estática. O apreço pelo cinema de David Lynch aparece como reflexo nos minutos finais deste filme, na conclusão que fundiu minha cabeça e me fez abraçar o mundo dessa mulher sem cabeça com unhas e dentes. Fantasmas? Nós passaremos, o registro ficará.
“Não penso nas interpretações que virão, mas acredito que o processo de criação tenha a ver com isso. Gosto de percorrer terrenos mais indefinidos, mais ambíguos, e isso sempre gera maiores possibilidades de interpretação. Não faço isso para que o público se desconcerte, e sim porque me parece que por aí se revelam as coisas. Quando me perguntam o que quero dizer com meus filmes, digo que não quero dizer nada. Quero compartilhar com o espectador um tempo, uma situação, uma emoção, uma conversa. Isso é mais importante para mim do que contar uma história. É o desejo de se comunicar, que nos move.”
A Mulher Sem Cabeça (La Mujer Sin Cabeza, Lucrecia Martel /2008)
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