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Ciente de que Marty McFly não vai além do poder criativo de uma mente saudosista e de que a manipulação do tempo é algo restrito aos livros de H.G. Wells, o Grupo Estação relançou essa semana, em sua maior sala, Sombras, o primeiro filme de John Cassavetes. É claro que a sensação de passar pela rua e ler o nome do filme nos letreiros da fachada nos remete imediatamente a um romântico 1959, ano de lançamento, mesmo que a baderna urbana nos acorde a todo instante a fim de dissipar o breve devaneio. É uma dessas surpresas que, por si só, transformam o dia em um autêntico evento e alteram completamente meu humor (voltei para casa na maior empolgação, tocando air drums de um jeito a fazer inveja em qualquer Keith Moon da vida), até porque eu nunca imaginei que pudesse entrar em um cinema, plena quinta-feira, às 15h, para assistir Cassavetes. Como já tinha visto o filme, além da disposição para revê-lo, pensei no momento como um catalisador de emoções cinéfilas, tal qual Truffaut faz em A Noite Americana, quando relembra o tempo em que roubava fotos de Orson Welles no cinema da cidade. É o destino fazendo seus improvisos.
O filme é a gênese do cinema cassavetiano, o primeiro momento de uma visão que reformulou parâmetros e apresentou novos meios de organização diante da câmera, instaurando um conceito fundamental que marca o compasso de grande parte de sua filmografia: a liberdade de criação atrelada às necessidades básicas na construção de um filme. É por isso que este, mais do que qualquer outro (talvez Faces possa servir na comparação), se mostra isento de qualquer preocupação hierárquica de enquadramento, de roteiro ou interpretação. Libertando-se das amarras que acabavam por limitar e tornar mecânico um processo que tinha por necessidade a aproximação com o real, o humano, Cassavetes faz um filme que se equilibra nos ímpetos juvenis e nas conseqüentes tensões que por ali se firmam, amoral e impulsivo, trazendo os personagens para primeiro plano e engendrando a narrativa através deles (traindo a convenção que prega o contrário). Os closes são agressivos, aproximam ao máximo a câmera do rosto na iminência de revelar o âmago da contenção amarga que existe em cada personagem. Me lembro da linda seqüência de diálogo entre Lynn Carlin e John Marley em Faces, na mesa de jantar, onde a confusão de sentimentos oscila entre dois extremos enquanto a ruína de uma relação é deflagrada através da ambigüidade entre gozo e dor. Em Sombras, o instante é a dança, já no final, que começa no riso e deságua no pranto, momento-síntese de um cinema que busca exaurir o homem ao máximo a fim de encontrar a natureza de sua essência. A frase que aparece ao final é um alívio beat - criva um estado de espírito de libertação que casa muito bem com a sensacional trilha sonora de Charles Mingus.
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