qualquer coisa
num verso intitulado mal secreto
 

10.10.08


[1:29 PM]

- Salvo engano, o único filme de Nicholas Ray que pude assistir em seu formato ideal foi Juventude Transviada, já que todos os outros foram redimensionados e exibidos fora de sua janela correta. Mas não adianta; seja no metrô ou em uma asa-delta, se o livro for bom, dificilmente eu fecho as páginas e espero pela calmaria e maciez da minha cama, leio ali mesmo. Com os filmes é a mesma coisa, embora a sensação de incompletude reine em cada seqüência picotada pelas distribuidoras ou telecines da vida. Dia desses assisti Sangue Sobre a Neve (no original, The Savage Innocents), que mantém Nicholas Ray invicto por essas bandas daqui. Só mesmo a força do registro visual para disfarçar o fullscreen horroroso e injusto, que acaba por reduzir toda a beleza de campo aberto do Ártico que ambienta a narrativa a um nível muito menor do que o original. Mas, ainda assim, a predileção de Ray para tratar de seres à margem encontra aqui um enlevo ainda mais interessante, que joga luz sobre conceitos morais e discute questões cívicas através do choque entre duas sociedades diferentes, abstendo-se de colocações maniqueístas e impondo a reflexão a todo instante, como só os verdadeiros mestres sabem fazer. Está lá no topo da obra do cara, pau a pau com Johnny Guitar e No Silêncio da Noite.

- Só vi dois filmes dele e obviamente estou longe de ter o conhecimento necessário para fazer qualquer julgamento sobre sua obra, mas o fato de o Arnaldo Jabor estar há tanto tempo longe das câmeras me agrada cada dia mais. Toda Nudez Será Castigada eu assisti na faculdade, um dia após ter lido a peça do Nelson Rodrigues, para apresentar um trabalho para o resto da turma. Achei o filme fraquíssimo, sem a menor noção de ajuste entre os elementos que o Nelson equilibrava com tanta destreza: o texto é irônico, mordaz, retrato cruel de um núcleo social brasileiro que se desestabiliza quando as aparências começam a ceder perante o verdadeiro “eu” de cada um, num jogo de interesses onde a hipocrisia nacional é capitã do time. Aí vem o Jabor e adapta a obra e extrai dela todo seu potencial dramático, inserindo um tom humorístico afetado que combina muito bem com a decisão de mudar o final e faz com que o filme seja realmente risível. Talvez o fato de o texto estar muito fresco na minha cabeça tenha prejudicado em demasia minha visão do filme, pode ser que um distanciamento temporal entre as duas linguagens seja necessário para que as coisas funcionem melhor. Ou talvez essa onda de passar livro e filme para abrandar o nível da discussão não passa de uma tremenda bobagem e acaba sendo um tiro no próprio pé. Enfim, só pra deixar gravado que ontem fui rever Sem Essa, Aranha (afinal de contas, a vírgula existe ou não?), mas na hora soube que a sessão havia mudado de horário e que iriam exibir Tudo Bem, filme de 78 do Jabor, que é igualmente fraco, mas se sustenta graças ao trio formado por Fernando Torres, Jorge Loredo e Luiz Linhares. A seqüência dos três bêbados mais Paulo Gracindo na cozinha é memorável, respeitando o espaço e o desempenho de cada um dos três atores enquanto eu lamentava o pouco tempo de cena deles em contraste com a excessiva duração do filme.

- Os livros, aqueles objetos transcendentes de amor táctil etc., andam sumidos por aqui mas não das minhas mãos. Nos últimos dias li o último romance de Kurt Vonnegut (pode deixar que esse eu devolvo, Jana) e o primeiro de Jack Kerouac, após inúmeras tentativas frustradas e sobre o qual desenvolverei algo mais tarde. Mas a maior surpresa mesmo veio com Fitzgerald, de quem eu nunca consegui chegar ao final do Gatsby – e olha que a minha edição, comprada por um simbólico real, possui menos de 130 páginas -, mas que me arrebatou desde o início com Suave é a Noite. Que livraço, bicho, devorei em menos de cinco dias, provavelmente é meu recorde este ano, levando em conta as proporções da coisa, claro. Se no Gatsby temos todo um entre-texto funcional, com elipses que marcam o compasso das relações desgastadas entre o pessoal do pós-guerra, em Suave é a Noite o cara é objetivo, vai direto ao ponto, cutuca as feridas da sociedade americana a fundo e não poupa nem mesmo suas experiências pessoais na elaboração da narrativa (a relação com o sanatório é abordada e possui paralelos com a internação de sua esposa Zelda Fitzgerald, que foi internada devido à uma doença mental). É interessante acompanhar a ruína de todos seus personagens, que começam juntos e felizes numa praia na Riviera Francesa e terminam separados e corroídos, seja pela distância ou por obstáculos maiores, dentre eles a morte. A precisão na construção psicológica dos personagens é cirúrgica, ressaltando o vazio existencial entre a 1ª Guerra e a Grande Depressão com um olhar analítico que evita os falsos juízos e outros moralismos. É por essas e outras que eu gosto de passar no sebo mesmo com módicos $5 no bolso, ninguém nunca sabe o que aquelas prateleiras empoeiradas ali serão capazes de nos proporcionar (além de uma alergia infernal, claro).

- E essa aranha é para todos os poetas mortos do nosso cinema. A frase é de Welles e consta numa capa de revista exibida em um rápido trecho de Tudo é Brasil, do Sganzerla:

“Um filme deixa de existir quando passa a ser apenas veículo de uma mensagem.”



 


é isso aí, bicho

 

 


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