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Vicky Cristina Barcelona flagra o momento em que Woody Allen descobriu o prazer tropical de usar havaianas na Europa. Leio em diversos lugares pessoas negando a produção recente do cara e justificando essa insatisfação através da quantidade de filmes que ele lança, sendo este o segundo a pintar no Brasil em 2008. Allen nunca foi um entusiasta da experimentação cinematográfica, seus filmes nunca se propuseram a discutir ou repensar a linguagem audiovisual e ele aparenta pouco ligar para isso. Daí o eterno pé atrás de uma parcela da crítica especializada para com seus filmes? Pode ser, se pensarmos que suas pretensões, tão grandes como sua extensa filmografia, estão a fazer cinema muito mais com o papel e a caneta do que com a câmera. Godard fez mais de quinze filmes durante a década de 60, pouco se importando se estava ou não a conceber exclusivamente obras-primas; a Belair de Bressane e Sganzerla produziu seis longas-metragens em pouco menos de um ano; Hitchcock ultrapassou a casa das dezenas só nos anos 40 e o aparecimento da câmera digital periga folgar ainda mais a questão da produção nos próximos anos. É óbvio que o filtro é necessário, mas a propagação de idéias é o que interessa. Muitos são fracos, estúpidos, meros esboços de idéias geniais? Sim - passo longe de Scoop, agradeço a visita de Igual a Tudo na Vida, desvio de Celebridades e atravesso a rua quando vejo Trapaceiros, mas não ignoro que todos eles adicionam (que sejam apenas números, não ligo) algo na maneira com a qual Allen se relaciona com seu cinema. Só o argumento de Melinda e Melinda vale o filme, o ingresso e o tempo gasto para sua apreciação, pra falar a verdade. No lugar da suposta compulsão por filmar, por conseguir financiamento anual para empunhar uma câmera, há de se recuar o olhar e perceber que ele, mais do que qualquer outro dos citados acima, fez sempre o mesmo filme. E isso não é uma ofensa, mesmo porque existe aquele famoso conceito de que um autor concebe sempre a mesma obra sob forma e tessituras diferentes, etc. e tal. A cada ano, o que chega até o público sob a égide de Woody Allen é uma linha de pensamento que se estende de maneira coerente e lida com o produto da dissolução das relações, a carência afetiva e o homem urbano às voltas com o meio em que está inserido, de uma forma quase sempre bem-humorada. Acusar um cara de filmar demais, a meu ver, é um argumento tão vago e errôneo que chega a ser engraçado. Antes de ver Vicky Cristina Barcelona (ou Notas de um velho safado) eu já sabia o que me esperava. E não posso dizer me decepcionei, justamente pois sei que a maior das pretensões de Woody Allen é ser ele mesmo. Imaginá-lo de havaianas no set de filmagem diz tanto sobre o enredo do filme como sobre a organização da narrativa: uma faca de dois gumes, onde, ao mesmo tempo em que o texto une de maneira flutuante e harmoniosa os personagens e o cenário em que se encontram, Allen usa recursos preguiçosos como a narração em off didática e empobrecedora para costurar a sucessão coesiva da trama. O olhar sobre as fronteiras morais da fase européia continua a se aprofundar de maneira vertiginosa, sempre estabelecendo linhas de conflito entre disparidades comportamentais e sociais que acabam se chocando em algum momento da narrativa. Mas o vigor quase juvenil com que a abordagem é feita alcança um compasso de entrega passional aos prazeres do corpo que nem dá para imaginar que, por trás daquelas lentes, está um senhor de 73 anos recém-completados.
Não sei se é a idade, mas o cara soube como poucos explorar a beleza de Penélope Cruz (que já estava uma delícia em Volver), um vulcão de sentidos a ponto de explodir em chamas coloridas e que me entristece profundamente ao constatar o vazio que se formou no meio da minha cama. Por ela eu voltaria várias e várias vezes ao cinema, está um tesão dos mais caros, capaz até de desbancar a gostosura de Scarlett Johansson. Em se tratando de Woody Allen, o papo é sempre o mesmo: uns amam, outros odeiam, vários decretam a falência de suas qualidades artísticas e eu acabo sempre sendo convencido a sair de casa para conferir com meus próprios olhos um filme que já vi várias vezes. Sem problemas, ano que vem tem mais.
P.S.: Em compensação, Selton Mello, a quem eu tinha visto na televisão ao lado de Ed Motta falando sobre o cinema de Cassavetes e Sganzerla, enumerando referências e aspirações, foi capaz de criar um dos melhores mecanismos de tortura que o cinema brasileiro pôde ver neste ano que caminha para o fim: Feliz Natal está tão interessado em brincar com luzes, lentes e cores que esquece de acontecer realmente enquanto cinema. É um exercício de ego, onde o interesse em obstruir os caminhos e concentrar personagens em seu próprio mundo de sofrimento, sem esperança alguma de algo que beire a redenção, não faz a minha cabeça de jeito nenhum, simplesmente não dou motivos para existir. Diálogos risíveis, cenas desnecessárias (o que é Leonardo Medeiros em posição fetal no meio da rua?), outras apelativas (o final com o garotinho) e um leve aceno para o melodrama mais barato de Alejandro González Iñarritú. O bacana é ver que Selton gostou tanto do último Batman que chamou Darlene Glória para encarnar Heath Ledger e a atriz cumpriu à risca sua proposta. Está assustadora como o Coringa.
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