qualquer coisa
num verso intitulado mal secreto
 

29.8.08


[4:06 AM]

No panteão do terror brasileiro a entidade suprema é Zé do Caixão, coveiro maldito que surgiu há cerca de quatro décadas atrás sob as unhas de um autêntico soldado de guerrilha que atende pelo nome de José Mojica Marins. São poucos os combatentes dessa resistência, homens que ainda acreditam na força das imagens como maneira de se documentar a história de uma cultura e de um povo. Talvez por isso Encarnação do Demônio seja dedicado a Jairo Ferreira e Rogério Sganzerla, que, assim como Mojica, são pontas-de-lança de uma armada que defende nosso subdesenvolvimento como forma de se inserir e se auto-caracterizar no mundo. Não há mal nisso, desde que os filmes continuem a existir ou simplesmente passem a me provar o contrário, fato este que felizmente ainda não aconteceu. Fica evidente a marca da indignação em cada seqüência da trama: Mojica parece expiar a raiva que o limbo de 40 anos reservou ao grande personagem de seu cinema com uma direção pulsante, que não esconde a necessidade de lançar o olhar para o passado antes de estabelecer um confronto com o futuro. É por isso que seu filme marca um momento de grande importância para essa retomada que o cinema brasileiro vem sofrendo desde meados dos anos 90. O velho sabe que é preciso recorrer aos filmes de ontem e livrar a cabeça de amarras institucionais para se produzir o famigerado cinema de gênero que nosso país parece se negar a produzir a todo instante. Só assim, assumindo nossa incapacidade e usando-a como benefício no ato da criação e da execução artística, é que o ensaio da mudança se dará. E é por isso que o cinema de Mojica dá um novo vigor à nossa memória cinematográfica, por apostar em suas próprias origens como meio de impulsão para se trabalhar com o moderno a ponto de se tornar forte o suficiente para aceitar os choques temporais e todas as outras tempestades que a indústria acaba por fazer cair nas nossas cabeças cortadas.

Encarnação do Demônio atualiza a figura do coveiro Josefel Zatanas e conclui uma história que começou com a censura do governo militar, nos idos de 1966, e atravessou muitos períodos até encontrar seu desfecho. Mojica então se juntou a uma turma raivosa para ressurgir com seu personagem no Brasil contemporâneo, o país dos travecos, das crianças que cheiram cola nas ruas, da polícia corrupta e de metodologia arbitrária e de uma população que mais do que nunca se prende às suas crenças religiosas em favor de uma alienação ilusória, abdicando totalmente da racionalidade como forma de libertação. O filme se sai bem por incorporar ao seu cardápio de códigos a violência extrema filmada de maneira anti-convencional (ao menos para os padrões atuais), onde mais importante do que fazer do espectador um voyeur é a necessidade de convencê-lo da veracidade dos fatos, através de um olhar que não está interessado em buscar cúmplices, e sim em corroborar o poder e a extensão de uma imagem. Questão de recepção, bicho, Mojica é esperto o suficiente para não subestimar seu público. É uma pena que a recíproca não seja verdadeira, pois, mesmo com o teor carregado de certos diálogos do Zé do Caixão que acabam por deturpar um pouco o ritmo das atuações (e, por conseqüência, da narrativa), seu filme representa o cinema brasileiro se retratando com seu passado da maneira mais amistosa possível, com um aperto de mão desajeitado devido às unhas assombrosamente grandes. E sujas.


Encarnação do Demônio (José Mojica Marins/2008)



 


é isso aí, bicho

 

26.8.08


[11:44 PM]

“Dorival Caymmi, vocês sabem...”

João Gilberto sabe que as palavras são como rodinhas de bicicleta: você não usa se não precisa. Gostaria de ter tido disposição para madrugar nas filas do Municipal com o intuito de garantir ingresso para a apresentação única do velho no Rio, mas meu espírito aventureiro do bairro proibido parece só funcionar depois do jogo de quarta-feira e olhe lá. O jeito foi me contentar com o ruído da agulha raspando a superfície riscada do disco En México, da época em que ele ainda ostentava um lustroso bigode à Seu Madruga e compunha suas próprias canções. Ainda hoje gosto de ouvir o canto tímido do João, mesmo quando sua arte se restringe ao máximo da síntese e abre mão de arranjos orquestrados para reproduzir com notável vigor o jargão máximo da bossa nova: um banquinho e um violão. Comprei, há um tempo, em CD, dois discos minimalistas do homem que reproduzem as mesmas canções manjadas de sempre e mesmo assim se sustentam de maneira singular devido à lapidação que os anos proporcionaram ao diamante exposto domingo passado no palco do Municipal. A versão de Lígia do In Tokyo, de 2001, é a mais bonita que eu já ouvi, superando até mesmo o dueto do Roberto com o Jobim para o especial de 1978 e outras interpretações do Chico, do Tom e do próprio João. E foi com a frase que abre esse post que o homem do sussurro embriagante lembrou, com entonação de reverência, do baiano que lançou o acarajé e o dendê para o mundo com a mais simples das perguntas: Você já foi à Bahia?

* * *

Ainda na seara musical mas já com um pé no cinema, assisti ontem, pela primeira vez, o documentário que Jom Tob Azulay realizou em 1976 depois de acompanhar a turnê que o grupo formado por Maria Bethânia, Gal Costa, Gilberto Gil e Caetano Veloso fez por algumas cidades brasileiras no ano citado. Os Doces Bárbaros é ótimo, atemporal e vale também como registro histórico de um momento em que a cultura mundial estava em plena efervescência e cuja recepção aqui no Brasil se dava também através de uma turma que gravitava em torno das contribuições artísticas desses quatro cavaleiros do após-calipso. É interessante notar que, mesmo numa dinâmica até então desconhecida (um grupo propriamente dito), as personas individuais que conhecemos hoje estavam muito bem modeladas já naquela metade dos anos setenta: a relação entre a imprensa e os irmãos Veloso sempre foi erguida sob um clima de tensão constante; enquanto Caetano joga com as palavras com o intuito de manipular as perguntas e, por conseqüência, os repórteres, Bethânia se mostra impaciente e não hesita em adotar a máxima da “pergunta idiota, tolerância zero” em nome de suas próprias verdades. Gil, à época mais emaconhado que nunca (o filme até perde um pouco o ritmo quando envereda nos desdobramentos causados pelo fato de ter sido preso com um beque na carteira, em Floripa), é o mais boa-praça, mesmo quando começa a discursar e não percebe que só ele entende o que fala. Já Gal era linda, gostosa e cantava demais. Pena que morreu cedo.

Dois grandes momentos do filme: Gil cantando Quando, música coletiva que o grupo fez em homenagem à Rita Lee (ííh...), um barato total; e os quatro ensaiando Peixe, composição de Caetano que acabou entrando na trilha do Sítio do Pica-Pau Amarelo e é uma das minhas preferidas do disco. Aliás, a Jana me deu o vinil duplo há uns cinco anos achando que era dos Novos Baianos e desde lá eu conto nos dedos as vezes em que o ouvi por inteiro. Do grupo, ainda prefiro Temporada de Verão, gravado na Bahia em 74 e sem a presença de Bethânia, mas com músicas lindas que compensam a ausência da nossa Capitã Caverna: Quem Nasceu, De Noite na Cama, O Conteúdo, Felicidade, O Sonho Acabou, Cantiga do Sapo e outras mais. Vale a ouvida.

* * *

E como só vejo o novo filme do Mojica amanhã à tarde (minhas expectativas tão muito altas, adoro os dois primeiros da trilogia, em especial À Meia-Noite Levarei Sua Alma), vou deixar para escrever sobre esse acontecimento - independente de sua qualidade - no decorrer da semana. Vi esses dias Foxy Brown, do Jack Hill, uma das mais óbvias inspirações do Tarantino para conceber o seu Jackie Brown, que, além de ter a mesma Pam Grier e seus belos peitos como protagonistas, ainda usa os mesmos letreiros de abertura do filme de 1974 e também trabalha suas personagens em cima da subversão da hierarquia racial. Aliás, agora eu sei de onde vem a afetação do personagem de Chris Tucker: Antonio Fargas já tinha criado as raízes da personagem no filme original, só que sem as roupas e aquele cabelo esquisito-extravagante. Depois de Russ Meyer, agora é hora de ir atrás de outros filmes do Hill.

* * *

Os vizinhos já sabem que a onda agora é soul, baby, soul. E enquanto meus banhos vão ficando cada vez mais animados e afinados, vai aí uma coletânea de músicas de Northern Soul da Motown que eu mesmo subi (livre de vírus, fica tranqüilo) com muita coisa boa: Goodbye Cruel Love na voz de Lina Grier, Frank Wilson mandando Do I Love You, Crying in the Night com os The Monitors e uma versão arrasadora de He’s All I Got com as meninas do The Supremes. Coisa fina, pra balançar o esqueleto no chuveiro e irritar os vizinhos. Existe coisa melhor que isso?



 


é isso aí, bicho

 

17.8.08


[8:31 PM]


Fui lá conferir o novo filme do Batman só agora, um mês depois da estréia mundial e da quebra semanal de recordes, um atrás do outro. Gosto com ressalvas do filme anterior, mesmo tendo-o visto apenas uma vez, ainda no cinema, na época do lançamento. Meu preferido da série continua sendo o segundo dirigido por Tim Burton, mas, como quase meio mundo, tinha boas expectativas para essa continuação comandada por Christopher Nolan. Pois bem, entrei no cinema confiante de que veria uma redefinição do universo dos heróis, mas o que restou ao término da sessão foi uma infernal dor de cabeça, causada pelo deslocamento constante de retina que as seqüências de ação provocam com o pretexto de dinamizar um roteiro que envereda pelo policial, o drama, o suspense e, em menor escala (veja que ironia), o mundo dos super-heróis. Porque, sinceramente, eu paguei o ingresso com o intuito de assistir ao Batman, não o Jack Bauer vestido de morcego salvando o mundo e destruindo Gotham. O Cavaleiro das Trevas, embora seja bem sucedido no reprocessamento de características do cinema de gênero dos anos 70, falha ao ambicionar ser algo além do retrato de um super-herói, numa tentativa vã de escapar dos limites da ficção e propor um embate entre os códigos das duas esferas. Muita ambição para pouco conteúdo. A grande sacada da franquia, que fica evidente a cada filme, é que os vilões possuem uma natureza riquíssima e que precisa ser explorada com maior intensidade a partir de agora. Heath Ledger, o único motivo para enfrentar as duas horas e meia de projeção, está diabólico em sua recriação do Coringa, um autêntico signo do caos. Sua caracterização é minuciosa e desde já eternizou a figura do ator, que já vinha entregando atuações marcantes e cuja morte interrompeu uma carreira de grande potencial criativo. A sequência da enfermeira, que tinha tudo para assumir ares de deboche, incomoda por sugerir uma subversão que sintetiza toda a idéia que tínhamos do personagem e que foi reconfigurada graças à leitura de Ledger e sua perfeita concepção. É o momento que marca o nascimento de um vilão e preconiza a morte de outro, e o duelo entre as duas forças do mal garante o tom de maior intensidade de toda a história. Mesmo assim, ainda espero por um Batman que encare o viés da realidade sem esquecer que, por trás dela, há uma cortina de ficção que não pode e nem deve ser ignorada.

* * *

A visita de David Lynch ao Brasil acabou ofuscando a figura de Donovan, trovador britânico que gravou ótimos discos no anos 60 e início dos 70 e que hoje anda pra lá de sumido. Donovan, também adepto da meditação que trouxe Lynch ao Brasil, fez um pocket show ao final de cada palestra concedida pelo cineasta apenas com seu fiel escudeiro, o violão, e aposto que muita gente nem devia saber de quem se tratava. Um dos poucos integrantes do grupo que acompanhou os Beatles à Índia em 1968, só agora fui perceber que uma das melhores e mais famosas músicas do cara está na trilha de Zodíaco, filme do Fincher que deixou muita gente do cinema de quatro no ano passado. Hurdy Gurdy Man, do disco homônimo também de 68, entra em uma das mais poderosas sequências do filme (a da foto acima), logo no início, e acompanha a progressão dos acontecimentos até soar única e cristalina na tela, um deleite para os bons ouvidos. Aliás, revendo o filme agora na HBO (no cinema eu quase dormi, mas admito que, ainda de pé, tô com a língua queimada) é que pude perceber sua força. A primeira hora é magistral, uma recriação do policial made in 70’s com uma polidez que soa diametralmente oposta à pretendida por O Cavaleiro das Trevas, por exemplo. É, ainda, um ótimo recurso de ação que se descentraliza com o objetivo de garantir uma riqueza de exploração psicológica que a mão segura de Fincher trata com muito rigor, sem os maneirismos de seus filmes anteriores.

* * *

Peguei uns trechos de Edifício Master hoje, pela madrugada, no Canal Brasil. Nem preciso atestar a excelência do Coutinho por aqui mais uma vez, mas só agora pude perceber que existe um impressionante diálogo entre a coleção de tipos de seu documentário e a visão de Sganzerla sobre a influência que o bairro carioca exerce nas pessoas, registrada trinta e dois anos antes. É por essas e outras que eu não me canso de dizer que Copacabana Mon Amour é o Brasil, em carne, osso e Ângela.



 


é isso aí, bicho

 

12.8.08


[4:52 PM]


Alguém aí me diz se conhece outro lugar do mundo onde a garçonete do boteco atende os clientes por meio de vocativos afáveis ("amor" e "meu bem" estão entre os mais utilizados) e de quebra usa no avental um botton estampado de Alphaville, do Godard. Quer dizer, usava.


Lapa, a Champs-Élysées brasileira.



 


é isso aí, bicho

 

10.8.08


[7:34 PM]

Alguns trechos de Vampiros, de John Carpenter, dublado e picotado numa madrugada carioca de quinta-feira: bastante subestimado, o filme é um exercício de gênero onde Carpenter propõe uma redefinição do universo das criaturas noturnas sem a ambição alegórica que marca, por exemplo, o Drácula do Coppola. Além da habitual eficiência na construção de cenas, onde mais importante que o ato da conclusão é todo o processo que leva ao clímax da ação (herança direta do cinema de Hitchcock), o filme é pontuado por momentos de impressionante força visual: vampiros brotando da terra no meio da estrada, James Woods dando uma bica na mulher enquanto caminham sob o sol pela rodovia, o primeiro ataque do grupo de extermínio ao ninho recém descoberto e o tom seco do diálogo final, uma promessa de afirmação que por pouco não se confunde com a filosofia camarada de um exterminador do futuro - e o figurino só faz aproximar ainda mais os dois ícones (jeans, camisa branca, jaqueta e óculos pretos). Se o tom desmistificador do personagem de Woods alerta para que se “esqueça tudo o que você sabe sobre vampiros”, o vigor e a intensidade criativa desse faroeste às avessas o colocam entre as obras definitivas do cinema de John Carpenter.



 


é isso aí, bicho

 

8.8.08


[2:37 PM]



"- Diabos, Kinch, você poderia ter ajoelhado quando sua mãe pediu, disse Buck Mulligan. Eu sou tão frio quanto você, mas pensar nos últimos suspiros de sua mãe, implorando para que você se ajoelhasse e rezasse por ela... E você recusou. Há algo de sinistro dentro de você".



 


é isso aí, bicho

 

2.8.08


[10:50 PM]

Everybody knows that our cities were built to be destroyed
You get annoyed, you buy a flat, you hide behind the mat
But I know she was born to do everything wrong with all of that
Maria Bethânia, please send me a letter
I wish to know things are getting better
Better, better, Beta, Beta, Bethânia
Please send me a letter I wish to know things are getting better
She has given her soul to the devil but the devil gave his soul to God
Before the flood, after the blood, before you can see
She has given her soul to the devil and bought a flat by the sea
Maria Bethânia, please send me a letter
I wish to know things are getting better
Better, better, Beta, Beta, Bethânia
Please send me a letter I wish to know things are getting better
Everybody knows that it's so hard to dig and get to the root
You eat the fruit, you go ahead, you wake up on your bed
But I love her face ‘cause it has nothing to do with all I said



 


é isso aí, bicho

 

 


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