[2:52 AM]
Fui para o ponto de ônibus com o Crônicas, do Dylan, o último exemplar que constava no estoque da livraria, depois de muito tempo flertando à distância com o livro. Já era depois da meia-noite e os ônibus demoram a passar, o que me pareceu um convite a espiar alguns trechos da coisa (até me surpreendi com um capítulo inteiro – pequeno, mas inteiro – dedicado ao New Morning, disco bucólico que eu adoro e que possui grandes canções ofuscadas por outras ainda maiores, de tempos anteriores). Um casal conversava, um menino com balões amarelos me pediu um real, e nada do ônibus passar. Calor. Dentre vários outros problemas, a maior das mazelas que o Rio de Janeiro apresenta não se relaciona com a intensidade da violência urbana, com o caos no trânsito, a desordem habitacional ou com a sujeira pútrida que invade as ruas, nada disso. Aqui, o perigo toma forma, se personifica e está concentrado em pequenas criaturas com o poder alquímico e instantâneo de desestabilizar estruturas e colocar abaixo um complexo castelo de cartas sem medir esforços: são as mulheres. Essas linhas são para a menina de vestido vermelho e cabelos curtos e amarrados que chegou ao ponto de braços cruzados, cantando uma música que eu não conheço, para me perguntar se o ônibus já havia passado. Era Woody Guthrie, mas depois era ela, e não era mais nada: nem avenida, nem sorvete, calor ou calça comprida.
Como é que você se chama, quando é que você me ama, onde é que vamos morar?
Acabamos dividindo um táxi, porque ela só tinha quatro reais e eu $3,25, e ela estuda artes cênicas em uma universidade do Estado e eu larguei o curso de letras, e eu sou de Minas e a família dela é de lá, uma cidade qualquer, e os dentes brancos e alinhados em escalas proporcionalmente geométricas contrastavam com um leve e quase imperceptível desvio de olhar que eu acabei conhecendo como sendo de Clarice. Que mistério tem Clarice, pra guardar-se assim tão firme no coração? Me mudo de casa no fim de semana e, como no fim mais trágico de algo que sequer chegou a acontecer, a mão sempre suada, provavelmente não a verei mais. Ou pode ser que sim, em algum teatro, ou pela janela do ônibus, ou então no próximo domingo, no mesmo ponto, no mesmo horário. Por enquanto, ela dorme a três ruas da minha, com o vestido vermelho pendurado na cadeira ao lado da cama e a memória esquecida num lance de dados que retalhou um mundo inteiro. Não pedi o telefone e não perguntei o número da casa, mas essas linhas são para você, Clarice, o maior dos problemas do Rio de Janeiro e a causa inesperada dessa insônia desgraçada.
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