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Cannes 2009: O júri é muito simpático mas é incompetente. Prêmio especial para Resnais? Palma de Ouro para Haneke? Muita marmelada. De longe, aqui do Brasil, recebendo os filmes através das linhas de cobertura feitas por algumas pessoas bacanas, não duvido que os melhores tenham sido premiados. Festival é assim mesmo, nem sempre o que a gente quer acontece. Em Cannes, então, com um nível de exigência do mais alto grau, não esperava decisão diferente de um júri capitaneado por Isabelle Huppert. A identificação artística com Haneke fez com que o diretor já entrasse em campo com uma vantagem em relação aos outros concorrentes. E dizem (o Merten, pelo menos) que A Fita Branca é mesmo o melhor filme do cara. Vamos esperar pelo Festival do Rio, então, para comprovar essa decisão que carrega uma leve pontada de nepotismo, se os deuses da boa vontade não tomarem a palavra por seu significado literal. Mesmo assim, fica um gosto de caroço de feijão na boca.
Gosto bastante do Haneke. Seu cinema me provoca, vez em quando cospe umas verdades sujas na minha cara a fim de cobrar uma reação por isso. Na maioria dos casos não usa palavras para deflagrar os terremotos sociais que seus filmes sugerem – é um cineasta de situações, de gestos e movimentos, onde o conflito da narrativa é instaurado a partir de resoluções visuais que dispensam suplemento textual. E essas resoluções, secas e pontuais, com o plano aberto e quase sempre imóvel, revelam conceitos e problemas da sociedade contemporânea com uma urgência quase documental.
Os primeiros minutos de Código Desconhecido, por exemplo. Um impressionante plano-sequência iniciado com um diálogo amistoso desemboca num confronto físico entre dois jovens no qual se misturam a questão racial, a posição social dos envolvidos e o abuso de poder das autoridades. Quase 10 minutos de imersão numa atmosfera sufocante que marca o tom de todo o cinema de Haneke. Em seu pensamento, só a tensão entre pólos opostos é capaz de sugerir a reflexão.
Nesse ambiente de frieza e impessoalidade, o que mais me atrai é o modo do diretor de captar o cenário em que ambienta seu rol de manipulações e sadismos. Mais do que a encenação do incômodo, de percepção do estado das coisas entre os homens, gosto do modo com que Haneke filma as ruas, os ambientes internos, as fachadas das casas, limpas, vivas, repletas de elementos díspares resultantes da globalização coexistindo aparentemente em harmonia (tema recorrente dos filmes do sujeito), mas cujas estruturas abrigam e disfarçam doenças sociais e valores corroídos, instintivamente primitivos, mostrando um descompasso nítido entre os avanços materiais e humanos do que se convencionou chamar de pós-modernidade.
É um discurso radical, complexo, que toca em várias feridas e expõe as chagas sem apresentar contra-propostas. Do ponto de vista sociológico, Haneke é um bom cineasta. Sua visão de mundo expressa um olhar cruel e seus métodos de abordagem são até discutíveis, mas depois de Código Desconhecido não me resta dúvida de que, se é realmente apenas isso o que ele sabe fazer (como diz um suposto alter ego do diretor no filme), que continue a explorar o cinema e a violência através desse viés. Na falta dos verborrágicos, o mundo precisa de polemistas visuais para alimentar suas discussões. Pois quem não se comunica se estrumbica, já dizia o bandido.
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