[5:25 AM]

No 1º ano do ensino médio, a escola em que eu estudava promoveu um debate no auditório lembrando o aniversário de meio século do suicídio de Getúlio Vargas. Foram colocados frente a frente dois grupos, cada um com umas cinco ou seis pessoas, que tinham opiniões divergentes acerca das intenções políticas do presidente. Uns o acusavam de fascista, outros exaltavam o avanço progressista de suas reformas. Eu fiquei na plateia, jogando bolinha de papel no palco e indeciso quanto ao lado em que me alinhava. Em cima do muro, tal qual o próprio Vargas ficou em diversos momentos de sua trajetória. Lembro que a Jana defendeu com unhas e dentes o presidente do povo, pai dos pobres, dos direitos trabalhistas, da Petrobras etc. Coisa de quem cresceu e foi educado sob a estrela da esquerda.
A verdade é que o período ditatorial de Vargas, o Estado Novo, continua sendo um capítulo nebuloso da nossa história. O que se relata nos livros é o lado burocrático da época, com a enumeração das características comuns a um governo despótico, deixando de lado episódios que evidenciam a perversidade do período. A censura obstrui o acesso à verdade, e hoje Vargas é visto como um herói para o povo brasileiro. Um dos presidentes mais populares que o Brasil já teve. O mesmo que dificultou as coisas para Orson Welles quando este veio para cá, em meados da década de 40. O mesmo que praticava torturas e coações, espancando civis e legitimando sua soberania através da violência e da intimidação.
Essa aulinha tosca de História aí em cima se justifica porque acabei de assistir a O Caso dos Irmãos Naves, filme de Luiz Sérgio Person que relata a história de dois irmãos injustamente acusados, violentados e encarcerados por mais de oito anos pelo governo Vargas. Em Araguari, cidade do interior de Minas, no final de 1937. A quebra da bolsa norte-americana ecoava nas plantações e nos estoques de café, o fascismo ganhava força e influenciava diretamente a Polaca, nossa quarta constituição. O filme se apóia nesses fatos para relatar, com uma secura quase documental, os trâmites judiciários e políticos que regeram o caso. De ritmo ágil, ancorado pelos diálogos concisos do roteiro escrito por Person em parceria com Jean-Claude Bernadet, existe no filme um movimento pendular que oscila entre o cinema policial, o drama familiar e o filme de tribunal, onde o jogo de moralidade e as relações de poder aproximam-no de uma realidade pretendida e explorada com uma agressividade que acaba por impedir sua classificação dentro de qualquer um dos três gêneros.
Se já havia demonstrado um senso estético vigoroso e cerebral em São Paulo S/A, com planos estudados em minúcia e um raciocínio de espaço que privilegia a relação (nem sempre harmoniosa) entre homem e ambiente, Person usa movimentos discretos de travelling e zoom neste filme como que para suavizar a tensão do texto, criando, a partir dessas flexibilizações de plano, espaços de respiração, de atenuação. O uso de profundidade é explorado em diversos momentos, como nas sequências da delegacia, onde um quadro de Vargas exposto na parede ao fundo é fotografado de modo a ressaltar sua patrulha da ação, uma espécie de controle absoluto de tudo que ali se passa. São toques de quem sabe o que faz e assume os riscos dessa postura. É bom lembrar que O Caso dos Irmãos Naves foi lançado em 1967, durante os primeiros anos da nossa segunda ditadura e, até onde sei, não sofreu nenhum tipo de represália por parte dos censores. Não quiseram se envolver novamente naquele que é considerado o maior erro do judiciário brasileiro.
Duas sequências são emblemáticas: as de tortura no campo, onde a câmera treme nervosamente a fim de ressaltar a violência que cai sobre os dois irmãos, com a luz sendo filtrada pelos galhos das árvores criando uma sensação cruel de desconforto e paradoxo (como um dia iluminado e bucólico permite tal atrocidade?); e uma no tribunal, essa das fotos aí em cima, onde os irmãos confessam para o júri que são inocentes, e que apanharam e foram torturados pela polícia local para dizer a verdade, posicionados de frente para a câmera, no meio da tela, com os habitantes da cidade preenchendo o campo ao fundo, fora de foco, indiscretamente passivos. De arrepiar.
Person elevou o cinema brasileiro às maiores potências da criação artística em sua curta carreira. Os dois filmes citados aqui são provas incontestes de sua capacidade de filtrar uma realidade e conciliar questões problemáticas inerentes à sua condição com um controle técnico que poucos conseguiram alcançar. Não é todo dia que se encontram filmes desse tamanho no cinema brasileiro. Grandes, imensos. Maiores do que qualquer coisa que se possa escrever sobre eles.
O Caso dos Irmãos Naves (Luiz Sérgio Person, 1967)
|