[2:04 AM]
A foto de um homem sendo linchado nas ruas de Porto Príncipe, capital do Haiti, me deixou arrasado. Nu, com as mãos e os pés amarrados, o homem é arrastado por uma corda enquanto os manifestantes o agridem e atiram coisas sobre ele. Logo depois, foi queimado vivo no meio da rua. Linchamento por roubo, segundo os jornais. É uma imagem chocante, não recomendada a ninguém, e mostra o caos que impera no país desde a devastação causada pelo terremoto que também vitimou alguns brasileiros. Uma manifestação agressiva da natureza e anos de evolução são reduzidos a uma mera lembrança, um vislumbre de razão que a fome e a dor tratam de varrer impiedosamente da memória. A mesma sensação de desconforto, guardadas as devidas proporções, acontece ao final de Taxi Driver, quando o protagonista Travis Bickle é enaltecido socialmente por seu violento ajuste de contas, pela chacina que comete com o intuito de salvar uma menina de 13 anos. O filme é arrebatador, crônica desesperançada e amarga de um período que ainda vivia a ressaca da turbulenta década anterior e a reverberação de questões cruciais influenciando a formação dos norte-americanos: os direitos civis, a violência, o Vietnã, assassinatos, o fim do sonho, Nixon... Scorsese poucas vezes repetiu a dose à altura, mesmo tendo feito outros filmes tão impactantes quanto. Mas Taxi Driver me arrebata até o desfecho, quando os jornais (e, consequentemente, uma parcela da população) conferem a seu justiceiro um reconhecimento heróico por sua ação que soa como uma atitude permissiva, um formal pedido de desculpas da sociedade em função de toda a opressão contra o paranóico taxista. Tudo termina aí, na valorização do terrorismo, no renascimento da destruição como forma de uma poesia instintiva, absolvida de suas implicações e consequências, mesmo depois de tudo o que aconteceu? É a mesma náusea causada por O Cobrador, conto do Rubem Fonseca: “Meu ódio agora é diferente. Tenho uma missão. Sempre tive uma missão e não sabia. Agora sei. Ana me ajudou a ver. Sei que se todo fodido fizesse como eu o mundo seria melhor e mais justo. Ana me ensinou a usar explosivos e acho que já estou preparado para essa mudança de escala. Matar um por um é coisa mística e disso eu me libertei. No Baile de Natal mataremos convencionalmente os que pudermos. Será o meu último gesto romântico inconseqüente. Escolhemos para iniciar a nova fase os compristas nojentos de um supermercado da zona sul. Serão mor¬tos por uma bomba de alto poder explosivo. Adeus, meu facão, adeus meu punhal, meu rifle, meu Colt Cobra, adeus minha Magnum, hoje será o último dia em que vocês serão usados. Beijo o meu facão. Explodirei as pessoas, adquirirei prestigio; não serei apenas o louco da Magnum.” Uma leitura mais desvinculada de fatores externos dessa conclusão ainda há de aparecer. Por enquanto, o espaço fica repleto de indagações morais e pensamentos tortos, enquanto ando de ônibus imaginando um macabro paralelo em que os linchadores do Haiti seriam exaltados por darem conta da repressão que a justiça ou a polícia local não foram capazes de cumprir. Não há comida, não há lei, tudo aponta para o mais selvagem dos primitivismos, e o estado em que as coisas chegaram me espanta, me entristece. Isso acontece em todo lugar, em todo país e com várias pessoas, diria o mais racional dos presentes à mesa. Eu sei. Mas eu também queria que, pelo menos no cinema e na literatura, as coisas pudessem ser diferentes.
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