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Charles Bukowski é um escritor muito popular entre o pessoal na casa dos vinte e poucos anos. De quando morava em Minas até hoje, nos bancos da faculdade ou do metrô do Rio, com freqüência vejo pessoas dessa faixa etária lendo e exaltando seus livros, toda a chapação e o desprendimento estilístico neles contidos. Muitos se identificam com as tormentas que o jovem Henry Chinaski atravessou durante a infância e adolescência, outros vislumbram um futuro semelhante ao do poeta bebum e comedor que vive cercado de mulheres e garrafas de cerveja. Ao longo de duas tentativas, com Misto Quente e Mulheres, tudo que eu queria era alcançar rapidamente o outro lado da ponte até o ponto final de ambos os livros.
O motivo é simples: a literatura de Bukowski é rasa como um cuspe que se pretende a poça. A prosa coloquial e vulgar resume sua rotina a sexo, cerveja e palavrões. Ok, com 15 anos isso é tudo o que um garoto precisa para alimentar seus desejos. Com 20 também, admito. Mas é uma escrita que se esgota facilmente por não apresentar ambições, por se contentar em repetir fórmulas e reconstituir quase factualmente e de maneira simplista uma trajetória errante, marcada pelo alcoolismo, pela violência e rabiscada sob a sujeira das ruas.
(Um parênteses: não que a ambição seja um fator necessário ou determinante para o sucesso de um escritor – foi a ruína de Truman Capote -, mas o fato de se propor a algo diferente, de querer ir além e tatear novos espaços, é um risco ao qual eu me disponho a enfrentar com mais boa vontade do que a obra de um cara que parece escrever sempre a mesma coisa). Bukowski conseguiu, através de sua escrita, transformar uma vida alucinada num mar de marasmo e monotonia. Não há espaço para invenção. Todo livro é a autobiografia de um cadáver, mas nem todos são Brás Cubas.
Eis então que me encontro novamente empacado no calhamaço russo que ultrapassa as mil páginas, e recorro a John Fante e seu Pergunte ao Pó para desobstruir os caminhos e me devolver ao fluxo prazeroso da leitura. O estilo é similar, prosaico, sem construções rebuscadas ou adeptas de recursos sofisticados, e o prefácio é do próprio Bukowski. Fante também escreve em primeira pessoa, usa o deboche como seu principal aliado e se aventura pelas ruas de Los Angeles à procura de algo que o instigue, o seduza. Mulheres, cervejas, confusão e você já viu esse filme antes.
O que os distingue, no entanto, é que Pergunte ao Pó vai amadurecendo aos poucos, numa sacada metalingüística que enriquece as margens da narrativa e dá uma complexidade maior tanto ao aspecto formal como às dificuldades que Arturo Bandini passa a encontrar em seu caminho. A questão temporal e o modo com que Fante sutilmente muda a abordagem, começando o livro com um herói quase adolescente, deslumbrado com as possibilidades de liberdade diante de um mundo que se desenha diante dele, para então transformá-lo num homem abandonado, desiludido amorosamente e com o peito em frangalhos, faz com que o livro cresça substancialmente a partir da metade. E nós vamos com ele, afinal, é para isto que estamos ali.
O início, bastante desanimador, me fez crer que um editor linha-grossa teria feito bem à verborragia inconseqüente de Fante, quase juvenil (em certo momento praguejei contra mim mesmo e cheguei até a abrir o velho caderninho de anotações para começar meu livro - se esse cara pode, por que não tentar?). Mas, aos poucos, fui percebendo que para que a mudança de tom pudesse ser exercitada, era necessário partir de um certo ponto, e então a opção por tal abordagem inicial se justificou. Ainda assim, não duvido que os mesmos acadêmicos que hoje questionam o valor literário de Kerouac e dos beats vejam a obra de Fante com olhos tortos, talvez com alguma justiça. O certo é que os livros mais famosos de ambos ganham vida e se fortalecem através de pontos sensíveis que, na maioria dos casos, são relegados ao esquecimento diante da suposta riqueza que seus temas carregam.
On The Road percorre milhares de estradas e cidades para um homem se convencer de que por trás de toda a inquietação daqueles movimentos existe uma grande amizade, ao passo que Pergunte ao Pó dialoga muito melhor com o pessoal dos vinte e poucos anos do que qualquer palavra vinda de Bukowski por retratar, não só no desenrolar da história, mas no próprio derramamento das linhas, o doloroso processo de amadurecimento de um homem.
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