A moral de “Like a Rolling Stone” é de simplesmente ser a canção popular mais importante dos últimos 40 anos. Um divisor de águas, diferente de tudo o que havia sido feito até então. Sua influência, mesmo que indireta, será encontrada em diversas formas de expressões artísticas que nossos netos irão desfrutar. Lançada em junho de 1965, quando meu pai tinha pouco mais de um ano de idade, no disco
Highway 61 Revisited, a mítica canção de Bob Dylan ganhou uma biografia que foi publicada no Brasil semana passada pela Companhia das Letras, intitulada
Like a Rolling Stone – Bob Dylan na Encruzilhada. Quem se aventurou a desbravar o universo das estrofes e estradas descritas por Dylan foi o crítico norte-americano Greil Marcus, cabra dos bons, com uma vasta e pra lá de respeitável bagagem.
Toda música tem uma história. "Riacho Fundo", "Asa Branca", "Dancin’ Queen", "Satisfaction" e qualquer uma que você escolher. Basta um pouco de boa vontade e imaginação. Agora, pense aí: quantas delas são capazes de sustentar uma biografia escrita, cuja análise confere à canção ares de evento, de marco social, um catalisador de avanços comportamentais e libertações que reverberaram longe e balançaram estruturas, seja do formato da composição ou mesmo da própria noção de valores de um povo? Para Greil Marcus, provavelmente só há... uma.

E os argumentos que o cara utiliza para justificar sua tese dão conta de toda essa pretensão, tanto na contextualização do período sócio-político em que a canção surgiu como no impacto que seu atrevimento formal e ideológico causou.
Os Estados Unidos dos anos 60 eram um barril de pólvora prestes a explodir. A Guerra Fria comia solta e inflava o balão do combate nuclear que ameaçava o país como uma nuvem negra, John Kennedy havia sido assassinado pouco tempo após a crise dos mísseis em Cuba, e a segregação racial, ferida não cicatrizada dos tempos da luta entre as colônias, mostrava seu lado mais cruel enquanto Malcolm X levava 13 tiros e encerrava um capítulo decisivo da batalha pelos direitos civis. E não era só isso. Ainda tinha a Guerra do Vietnã, que dava seus primeiros passos ao tirar mais de três mil jovens de casa e mandá-los para o meio da selva asiática.
Era o solitário país do medo, numa época de paranoia em que as canções significavam mais do que um simples som emitido por ondas de rádio. Eram garrafas jogadas ao mar com um bilhete dentro, e não só precisavam como exigiam ser abertas e confrontadas por quem as ouvia. Bob Dylan não era visto como um cantor - as pessoas iam aos seus shows para ouvir o sermão da montanha, de olhos vidrados no palco, sem perder um suspiro sequer de uma mensagem cifrada que continha verdades e anseios de uma juventude ávida por se descobrir. E acabaram se descobrindo ali, no canto rouco e quase sempre em um só tom de um sujeito magrelo e esfarrapado de pouco mais de vinte anos de idade.
(Existe por aí uma fita cassete com uma gravação da banda vocal que eu tive na adolescência, sem instrumentos, apenas vozes, inconsciente mas diretamente influenciada pelas harmonias dos Beach Boys, só que sem a sofisticação destas. Posso assegurar que renderia um livro de umas 700 páginas e cujo conteúdo redefiniria diversos conceitos ocidentais já adquiridos, mas como a cópia permanece perdida – acredito ter sido roubada do banheiro dos fundos que eu usava como estúdio por algum fã lunático - o mundo se contentará com meus pobres textos)
E aí surgiu “Like a Rolling Stone”, devastadora, diferente de tudo o que já havia sido escrito, banhada por guitarras e teclados que alcançavam o ponto mais alto da estratosfera. Uma provocação metafórica, ousada, com o dobro do tamanho das canções que tocavam no rádio à época. “Ninguém havia realmente escrito canções antes, mesmo”, disse Dylan em 1966, um ano após o estouro de seu hino. Quando o rock falava sobre carros e garotas, “Like a Rolling Stone” veio decretar a falência moral de uma nação e desafiar seus habitantes a se encarar no espelho. Era difícil, indigesto, com um incômodo permanente, mas necessário. Uma música que propunha um duelo. Em meio a todo o caos que assola esse mundo, quem é você?, perguntava o refrão que parecia jorrar do rádio.
O livro do Greil Marcus se vale de uma veia poética para analisar os pormenores que compõem a galáxia dessa canção, desde o corpo de sua estrutura, passando pela função dos instrumentos e a força com que a voz e a interpretação de Dylan imprimem à violência de sua execução. Marcus vê “Like a Rolling Stone” como um organismo solto no ar, que antecedeu o próprio Dylan, mas cujos contornos foram captados por seu pensamento e sua caneta no longínquo ano de 1965. O autor confere à canção a aura de um estado de espírito, algo que nem sempre irá se adaptar às nossas vontades mas que estará sempre aí, vagando, feito um fantasma da eletricidade, de acordo com nossas necessidades.
É um livro apaixonado, em vários momentos viajante, mas que cumpre seu papel de sismógrafo ao registrar com um desejo de ficção os abalos sísmicos que quatro estrofes causaram em um mundo que procura ainda hoje os caminhos por onde seguir. Ao acentuar a força e o ímpeto de liberdade emanado pela canção, Marcus nota que nem mesmo o próprio Dylan foi capaz de traduzi-la, ou de captar a essência de seu significado, em diferentes períodos de sua vida. Ele está certo. Nunca cantada da mesma maneira, “Like a Rolling Stone” permanece sendo o objeto não identificado que continua pondo fogo em nossos apartamentos e derrubando as paredes ao redor.
Abaixo, dois momentos diferentes que exemplificam os níveis de fúria que podem ser encontrados dentro da canção. O primeiro data de 1965, no tradicional Newport Folk Festival, com um Dylan ainda desajeitado e intimidado, procurando através de becos apertados a maneira de afirmar o que cantava.
E aqui, provavelmente o maior momento do rock’n’roll. Se eu pudesse voltar no tempo e dispusesse de poucos minutos para presenciar, escolheria estar nesse concerto. A raiva e a vitalidade que fazem desta a apresentação definitiva de “Like a Rolling Stone” são impressionantes, de causar calafrios, ao mostrar um Dylan maníaco, alheio às suas funções, aos berros e completamente chapado, porém absolutamente senhor de si. Um poeta louco, flagrado no instante em que se lança ao palco em crise, alvo de flechas, rugindo ferozmente contra um mundo de surdos. Tanta selvageria não poderia exigir menos: finalmente ele havia conseguido se incorporar à canção.