qualquer coisa
num verso intitulado mal secreto
 

20.5.10


[10:30 PM]

Como aqui a cabotinagem rola solta, deixo o link para dois textos que escrevi em colaboração com o site Laboratório Pop. Um é sobre Deu a Louca nos Bichos, filmeco que não serve nem para matar o tempo (e pensar que Roger Kumble fez Segundas Intenções, onde botou a Buffy para beijar a legalmente loira ao som de Blur); e o outro é a respeito de Quincas Berro Dágua, novo filme do Sérgio Machado adaptado da novela de Jorge Amado.



 


é isso aí, bicho

 

18.5.10


[4:32 AM]

À UMA HORA DA MANHÃ

Enfim, só! Ouve-se apenas o rolar das rodas dos fiacres atrasados e alquebrados. Durante algumas horas nós possuiremos o silêncio, senão o repouso. Enfim a tirania da face humana desapareceu e só sofrerei por mim mesmo.

Enfim! É-me permitido, então, relaxar no banho das trevas. De saída, uma dupla volta na chave aumentará minha solidão e fortificará as barricadas que me separam atualmente do mundo.

Horrível vida! Horrível cidade! Recapitulemos o dia de hoje: ter visto muitos homens de letras, um dos quais me perguntou se se podia ir à Rússia por via terrestre (ele tomava, sem dúvida, a Rússia por uma ilha); ter discutido, generosamente, com o diretor de uma revista que a cada objeção respondia: “Aqui é o partido das pessoas honestas”, o que implica que todas as outras publicações são redigidas por patifes; ter saudado umas vinte pessoas, das quais quinzes desconhecidas; ter distribuído cumprimentos manuais na mesma proporção e isso sem ter tomado a precaução de comprar luvas; ter subido, para matar o tempo durante uma pancada de chuva, à casa de uma ginasta especialista em saltos, que me pediu que desenhasse um costume de Venustre; ter cortejado um diretor de teatro que me disse despedindo-se de mim: “Você faria melhor se se dirigisse a Z..., é o mais pesado, o mais tolo e o mais célebre de todos os meus autores; com ele talvez você pudesse chegar a alguma coisa. Fale com ele, depois nos veremos”; ter me vangloriado (por quê?) de várias ações vis que jamais cometi e ter negado covardemente alguns outros malfeitos que eu cometera com prazer, delito de fanfarronadas, crimes de respeito humano; ter recusado a um amigo um serviço fácil e dado uma recomendação por escrito a um perfeito idiota; ufa! E será que isso acabou?

Descontente de todos os meus descontentamentos e de mim mesmo, gostaria de me recuperar e me orgulhar um pouco no silêncio e na solidão da noite. Almas daqueles que amei, almas daqueles que exaltei, fortificai-me, sustentai-me, afastai de mim a mentira e os vapores corruptores do mundo; e Vós, Senhor meu Deus!, acordai em mim a graça de produzir alguns belos versos que provem a mim mesmo que eu não sou o último dos homens, que eu não sou inferior àqueles a quem desprezo.

Charles Baudelaire, Pequenos Poemas em Prosa.



 


é isso aí, bicho

 

13.5.10


[3:00 AM]


A quebra da bolsa em 1929 foi uma das grandes tragédias econômicas do século XX, responsável por arruinar um país e envolver o mundo numa névoa de recessão. Empresas faliram, ogranizações se desmantelaram, pessoas se jogavam das janelas, combalidas e pobres, enquanto milhares de sacos de café eram queimados do lado de baixo do Equador. O que raramente é lembrado sobre esse período é que a derrocada econômica desencadeou um processo socialmente positivo: ao se dar conta de que o dinheiro não podia comprar tudo, as pessoas começaram a encarar a vida de outra forma.
Era uma sociedade conservadora, engessada em seus rígidos princípios morais, baseada num sistema patriarcal e censor, onde não havia espaço para questionamentos. Os filhos andavam de cabeça baixa e não ousavam desafiar a subserviência aos pais. Num ambiente assim, qualquer fagulha rapidamente se transforma em fogueira.
Clamor do Sexo (1961), de Elia Kazan, flagra justamente o momento em que as chamas desse fogo começam a se alastrar, onde o sexo se transforma na força propulsora de um explosivo ímpeto de libertação, de inquietude antes contida.
Numa cidadezinha do interior, parecida com a minha, onde todos se conhecem e sabem com quem os outros se deitam, dois jovens descobrem o sexo e são reprimidos pela sociedade opressora da época. Só se pode transar após o casamento. Não se deve ceder aos desejos impuros. Imperativos demais, ordens demais. A vida em linha reta e uniforme. Essa inibição forçada termina por deflagrar nos dois um asco por aquele ambiente, aquela caretice generalizada, hipócrita, de tal forma que as limitações do espaço acabam sufocando qualquer tentativa de levar uma vida normal.
Ele vai estudar fora. Ela pira, é internada num sanatório. Há diversas possibilidades de leitura para o caso desses jovens, e Elia Kazan compõe uma cenário com uma riqueza tão complexa, atravessando as bases morais da educação norte-americana com as então novas teorias psicanalíticas propostas por um tal Sigmund, intimamente ligadas à sexualidade, que o filme, embora se ambiente na virada dos anos 30, consegue refletir e antecipar todas as revoluções que o mundo passou no período em que foi realizado, a década de 60. E Kazan, cuja trajetória pessoal é marcada por uma tenebrosa aproximação com forças do mal, monta esse delicado painel transitório sem instituir culpados, longe de qualquer julgamento de valor. Em certo momento, a mãe repressora confessa à filha: "Peço desculpas se você acha que lhe eduquei errado. Te dei a educação que achava correta, a mesma que recebi de minha mãe, e a mesma que acredito que ela tenha recebido da mãe dela."
Hoje mal me lembro de Sindicato de Ladrões, que assisti bem no início da cinefilia (na época em que alugava 10 filmes por semana e não pagava nenhum), mas voltarei a ele e a outros do diretor muito em breve, já que Clamor do Sexo me pegou de um jeito inesperado. É o melhor filme que vejo desde o último Cassavetes ou o último Nicholas Ray que tive em mãos, e coloque uma dose de muitos e muitos meses nesse intervalo. Kazan se junta aos dois mestres ao compor um filme vivo, pulsante, sobre pessoas desajustadas que se encontram no mais agudo limiar da transição mas não sabem como lidar diante do abismo das esquinas. "It's life and life only", diria o bardo.
É então que a crise e a falência econômica operam um papel crucial na vida dessas pessoas: a perda do dinheiro estremece um conjunto de valores que já não cabiam naquele contexto. Com os pais que pulam de suas janelas, deprimidos e acabados, são sepultadas crenças e formas ultrapassadas de se enxergar o mundo. A liberdade ganha novos tons. O final do filme, belíssimo, de uma tristeza lancinante, mostra os efeitos dessa passagem sensorial e acena para uma vida que precisa seguir em frente. Natalie Wood reencontra Warren Beatty após todo o difícil tormento da adequação para perceber que o momento dos dois havia passado, não existe mais. Mas que, diante da cumplicidade e da paixão que alimentaram juntos, jamais se esgotaria.




 


é isso aí, bicho

 

9.5.10


[11:32 PM]

Durante muito tempo, os filmes do Woody Allen funcionaram para mim a partir de similaridades comuns também às cerimônias familiares de Natal: têm todo ano, não apresentam grandes diferenças com o passar do tempo, soam derivativos, com uma ou outra surpresa (um pernil novo num caso e um coadjuvante de luxo noutro), agradáveis e fugazes, cuja lembrança acaba misturando as sensações de que já vi aquilo antes, talvez no ano anterior. Até que o velho pândego descobriu a Europa e, com um sopro revigorante de energia, fez filmes que podem não ser melhores, mas ao menos apresentam elementos dissonantes à tônica habitual, mesmo trazendo idiossincrasias próprias de seu mundo cinema. Não por acaso, esse rejuvenescimento fez com que voltasse também a filmar bem as mulheres para as quais escreve.
Nesse sentido, Tudo Pode Dar Certo é um retrocesso, pois funciona exclusivamente, como diversos exemplos da sua prolífica filmografia, em função do roteiro. É Woody Allen fazendo cinema com a caneta, criando esquetes de humor através da neurose, atacando Deus e todos os mortais que atravessam seu caminho (praticamente um seguir fiel de H. L. Mencken), desfiando acidez por um cenário estranho e ao mesmo tempo íntimo, como são os lugares que conhecemos com maior propriedade - por que mudamos nós ou os lugares e suas ambiguidades? Vai saber. A Nova York é íntima para Allen e estranha para Boris - seu alter ego da vez -, uma cidade capaz de lhe pregar peças quando menos se espera.
Para um diretor que encontrou formas de expressão ligadas à sexualidade e ao crime em suas últimas criações, revelando a porção visual que sua escrita verborrágica diversas vezes deixa de lado (além de muito bem montado, O Sonho de Cassandra traz uma elipse que só no cinema poderia ser executada em seu grau máximo elaboração, como de fato é), o resultado soa pequeno. Um filme independente e pequeno, eu diria. O pouco que fica é a sensação de dever cumprido com as obrigações anuais, como a presença nas ceias de natal ou nos almoços de dia das mães. Espero que o projeto de filmar no Rio, na Europa ou fora de Nova York não mingue - comidas exóticas sempre fazem bem a um cardápio careta.
P.S.: Falando em refeições, sem esquecer da sobremesa, Evan Rachel Wood está no ponto certo. Uma delícia.




 


é isso aí, bicho

 

 


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