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A quebra da bolsa em 1929 foi uma das grandes tragédias econômicas do século XX, responsável por arruinar um país e envolver o mundo numa névoa de recessão. Empresas faliram, ogranizações se desmantelaram, pessoas se jogavam das janelas, combalidas e pobres, enquanto milhares de sacos de café eram queimados do lado de baixo do Equador. O que raramente é lembrado sobre esse período é que a derrocada econômica desencadeou um processo socialmente positivo: ao se dar conta de que o dinheiro não podia comprar tudo, as pessoas começaram a encarar a vida de outra forma. Era uma sociedade conservadora, engessada em seus rígidos princípios morais, baseada num sistema patriarcal e censor, onde não havia espaço para questionamentos. Os filhos andavam de cabeça baixa e não ousavam desafiar a subserviência aos pais. Num ambiente assim, qualquer fagulha rapidamente se transforma em fogueira. Clamor do Sexo (1961), de Elia Kazan, flagra justamente o momento em que as chamas desse fogo começam a se alastrar, onde o sexo se transforma na força propulsora de um explosivo ímpeto de libertação, de inquietude antes contida. Numa cidadezinha do interior, parecida com a minha, onde todos se conhecem e sabem com quem os outros se deitam, dois jovens descobrem o sexo e são reprimidos pela sociedade opressora da época. Só se pode transar após o casamento. Não se deve ceder aos desejos impuros. Imperativos demais, ordens demais. A vida em linha reta e uniforme. Essa inibição forçada termina por deflagrar nos dois um asco por aquele ambiente, aquela caretice generalizada, hipócrita, de tal forma que as limitações do espaço acabam sufocando qualquer tentativa de levar uma vida normal. Ele vai estudar fora. Ela pira, é internada num sanatório. Há diversas possibilidades de leitura para o caso desses jovens, e Elia Kazan compõe uma cenário com uma riqueza tão complexa, atravessando as bases morais da educação norte-americana com as então novas teorias psicanalíticas propostas por um tal Sigmund, intimamente ligadas à sexualidade, que o filme, embora se ambiente na virada dos anos 30, consegue refletir e antecipar todas as revoluções que o mundo passou no período em que foi realizado, a década de 60. E Kazan, cuja trajetória pessoal é marcada por uma tenebrosa aproximação com forças do mal, monta esse delicado painel transitório sem instituir culpados, longe de qualquer julgamento de valor. Em certo momento, a mãe repressora confessa à filha: "Peço desculpas se você acha que lhe eduquei errado. Te dei a educação que achava correta, a mesma que recebi de minha mãe, e a mesma que acredito que ela tenha recebido da mãe dela." Hoje mal me lembro de Sindicato de Ladrões, que assisti bem no início da cinefilia (na época em que alugava 10 filmes por semana e não pagava nenhum), mas voltarei a ele e a outros do diretor muito em breve, já que Clamor do Sexo me pegou de um jeito inesperado. É o melhor filme que vejo desde o último Cassavetes ou o último Nicholas Ray que tive em mãos, e coloque uma dose de muitos e muitos meses nesse intervalo. Kazan se junta aos dois mestres ao compor um filme vivo, pulsante, sobre pessoas desajustadas que se encontram no mais agudo limiar da transição mas não sabem como lidar diante do abismo das esquinas. "It's life and life only", diria o bardo. É então que a crise e a falência econômica operam um papel crucial na vida dessas pessoas: a perda do dinheiro estremece um conjunto de valores que já não cabiam naquele contexto. Com os pais que pulam de suas janelas, deprimidos e acabados, são sepultadas crenças e formas ultrapassadas de se enxergar o mundo. A liberdade ganha novos tons. O final do filme, belíssimo, de uma tristeza lancinante, mostra os efeitos dessa passagem sensorial e acena para uma vida que precisa seguir em frente. Natalie Wood reencontra Warren Beatty após todo o difícil tormento da adequação para perceber que o momento dos dois havia passado, não existe mais. Mas que, diante da cumplicidade e da paixão que alimentaram juntos, jamais se esgotaria. 
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