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Dizem que o que distingue os homens dos animais é a capacidade de criação, o resultado de um laborioso processo de invenção que resulta em uma obra de arte, independente de sua qualidade. Da mesma forma que a produção artística eleva o indivíduo, a interpretação dos objetos criados por ele garante um certo conforto àqueles incapazes de desenhar um mísero boneco de palito ou que não conseguem escrever nem mesmo uma singela lista de supermercado. Estar diante de um objeto artístico de primeira grandeza faz com que eu minimize minhas imperfeições, esquecendo por um momento os desatinos da coceira de insatisfação no canto esquerdo do cérebro que parece não ter fim. A arte perturba os satisfeitos e satisfaz os perturbados, já dizia o outro. É a mais autêntica das verdades. Acontece com a música. Acontece com certas pinturas. Acontece nos filmes, na vida e na TNT.E agora aconteceu com a literatura, mais uma vez. Com os livros é sempre melhor, mais intenso, pois a exigência física e intelectual que a imersão nas páginas de um livro demanda é superior aos esforços requeridos pelas outras artes, no meu caso. O Coração é Um Caçador Solitário, romance que a escritora norte-americana Carson McCullers, a feiosinha que ri de nós aí em cima, publicou em 1940, tirou o chão dos meus pés quando alcancei o ponto final da travessia. Sintomas básicos: taquicardia, náusea, confusão mental, propensão ao fluxo desconexo de palavras e um espanto que só a fisionomia humana é capaz de conceber. Foi assim que me senti, completamente estupefato; o que é até irônico, já que a prosa de Carson evita excessos e tons grandiloqüentes, soando mínima, quase tímida, mas extremamente forte e precisa.O livro faz um painel de uma cidadezinha no extremo sul dos Estados Unidos no final da década de 30. Os ingredientes são conhecidos: feridas não-cicatrizadas abertas pela Grande Depressão, atraso econômico, desigualdade, miséria e a brutalidade corrosiva do racismo. Sobre todos esses pontos, paira o satélite azul e silencioso da solidão. A descrição da cidade, logo nas primeiras linhas, é essa:“A cidade ficava no meio do Extremo Sul. Os verões eram longos e os meses de inverno frio muito poucos. Quase sempre o céu se mostrava de um azul límpido e brilhante, e o sol ardia com louca intensidade. Em seguida vinha as chuvas leves e frias de novembro, e talvez depois houvesse geada e alguns curtos meses de frio. Os invernos mudavam, mas os verões nunca deixavam de trazer um calor crescente. A cidade era bastante grande. Na rua principal, havia várias quadras de lojas e escritórios de dois e três andares. Mas os maiores prédios eram as fábricas, que empregavam grande porcentagem da população. Essas fábricas têxteis eram grandes e prósperas, e a maioria dos operários da cidade muito pobre. Muitas vezes, nos rostos que se viam pelas ruas, notava-se aquela desesperada aparência de fome e solidão.”Personagens banais, marcados por pequenas agressões cotidianas que deformam suas personalidades, seja através do sexo sem sentimento que apaga a chama interior de dois jovens, ou do amor não correspondido de um surdo-mudo pelo amigo, que acaba derrubando-o física e moralmente. São pessoas comuns, com ambições que não vão além de um piano ou uma vida mais confortável, que não se desnudam em monólogos inspirados ou frases de efeito, mas que encontram o canto uníssono quando se perdem na mesma névoa de angústia e isolamento que encobre a cidade. Mas Carson não tem pena de nenhum deles – a vida é assim. Ela é assim. Mick Kelly, a garotinha apaixonada por música que larga a escola e adentra a vida adulta antes mesmo de crescer para ajudar nas contas da casa, é seu espelho fixado na parede, torto e rachado nos cantos. O senso de humanidade presente na escrita quente e acolhedora da autora transborda pelas páginas, compondo um complexo painel de uma sociedade devastada em seus conceitos retrógrados. Há uma extensa discussão sobre a questão racial durante o livro, assim como a situação de operários massacrados por seus patrões encontra eco em Jake Blount, um alcoólatra que acredita saber a verdade, mas não possui meios de propagá-la aos demais. Em certo momento, ele diz: "Um homem sabe. Vê todo um maldito exército de desempregados e bilhões de dólares e milhares de quilômetros de terra desperdiçados. Vê a guerra se aproximando. Vê que, quando as pessoas sofrem o bastante, se tornam más e desagradáveis, e alguma coisa morre dentro delas. Mas o principal é que todo o sistema mundial está assentado sobre uma mentira. E embora seja clara como o sol brilhante, os bocós têm vivido com essa mentira por tanto tempo que não podem vê-la." Um impressionante confronto verbal entre Jake e um médico negro, idealista fanático, ambos defendendo a mesma causa, porém através de dispositivos distintos, define os caminhos trilhados pelos dois durante o livro. Dura umas 10 páginas, e é tão desgastante que o fôlego chega a faltar na sombria conclusão do debate, maculada por ofensas que terminam com o golpe final dado pelo médico: “Branco... Demônio.” Cada capítulo é desenvolvido sob o ponto de vista de um personagem diferente, e todas as vozes que compõem a narrativa, repleta de sutilezas e momentos impactantes, imprimem um ritmo ágil à linguagem objetiva de Carson, que concluiu o romance com 22 anos de idade e morreu aos 50, em 1967, após enfrentar diversas doenças, o suicídio do marido e a paralisia do lado esquerdo de seu corpo. Para escrever, Carson utilizava apenas um dedo e só podia fazê-lo deitada, sob forte incômodo. Pode ser que a dor física inerente à sua escrita esteja ligada ao humanismo com o qual retratou personagens ambíguos e incompreendidos, perdidos em uma sociedade marcada pela brutalidade e pela intolerância. Por enquanto, estou incapacitado de me aproximar de qualquer outro livro. O Coração é Um Caçador Solitário me apresentou a uma cidade antes desconhecida e agora estou preso nela, vagando como um esquecido andarilho por ruas tristes e ameaçadoras, cujo ar é impregnado de violência e opressão. Atingi o pináculo espiritual durante as 316 páginas percorridas, experimentei aquele momento em que um sentimento de completude cai sobre nós, a iluminação metafísica que alguns encontram na religião e outros nas drogas, onde pude conviver e partilhar a intimidade de pessoas que sequer existem. A recompensa não tem tamanho, é muito mais extensa que qualquer coisa que se escreva aqui, mas a sensação posterior chama a perda, traz a inquietação, é a hora em que a realidade esmurra com força, a hora em que volto a ser algo que não sei o que é.
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