[10:20 PM]
“Não, o que aconteceu não foi nada que tivesse sido concebido previamente; tomou meramente a forma da luz do amanhecer contra o barro branco da parede ao meu lado e teve um efeito extraordinário, pois imediatamente comecei a vivenciar a sensação em minhas gengivas alertando para algo fascinante, e junto com isso um sentimento apertado ou doloroso em meu peito. Quem é alérgico a penas ou a pólen sabe do que estou falando, pois detecta sua presença com a maior sutileza. Em meu caso a causa, naquela manhã, era a cor da parede com o sol nascente batendo nela, e quando essa cor se tornou mais profunda tive que largar o inhame que estava comendo e me apoiar no chão com as duas mãos, pois senti o mundo oscilar embaixo de mim. Se estivesse montado num cavalo, teria me agarrado na alça da sela. Uma poderosa magnificência não humana, em outras palavras, parecia estar sob mim. E era aquela própria cor suavemente rosada, como a água de uma melancia, que produzia aquilo. Reconheci de imediato a importância da coisa, assim como ao longo da vida tinha reconhecido esses momentos em que o mundo começa a falar, em que ouço vozes dos objetos e das cores; então o universo físico começa a ondear, a mudar, a arfar, a inchar, a se aplainar, de modo que parece que até os cães precisam se apoiar numa árvore, estremecendo. Assim, naquela parede branca com suas puas, como uma pele eriçada por furúnculos, incidia a luz rósea, e era semelhante a voar sobre pontos brancos do mar a três mil metros de altitude quando o sol começa a nascer. Fazia pelo menos cinqüenta anos que eu tinha visto uma cor como aquela, e julgava ser capaz de lembrar de mim mesmo, menino pequeno, despertando sozinho numa cama de casal, uma cama preta, e olhando para o teto onde havia um alto relevo oval de gesso no estilo de antigamente, com peras, violinos, feixes de trigo e rostos de anjos; e em direção ao exterior, uma veneziana branca, de quase quatro metros de largura, banhada pela mesma luz rósea.” Henderson, o Rei da Chuva. Saul Bellow, 1958.
A mesma luz roséa que iluminou meu quarto no dia das crianças de 1996, aos nove anos de idade, quando acordei ansioso no meio da tarde e encontrei o vinil de “ O Samba Poconé”, do Skank, até onde me lembro meu primeiro disco, sobre o exaustor que ficava ao lado da cama. Skank, né, meio queimação. Fazer o quê, se meu pretério é imperfeito? A sina me acompanha até hoje, volta e meia me comparam ao Samuel Rosa na rua, nas festas e nos botecos. A última foi uma menina que parou à minha frente e começou a cantar Três Lados desafinadamente, para depois desabar numa crise de riso. Não ligo. O Samuel é gente finíssima, cruzeirense roxo, só pelo nome dá pra sacar a energia boa que o cara emana. Ouvi o elepê até arranhar, hoje não o tenho mais. Mas me lembro sempre da suave luz rosada que banhou o quarto naquele dia, e quando li esse trecho no livro de Saul Bellow, autor que me foi recomendado pelo mestre Grijó, quis pagar umas cervejas ao homem em agradecimento por saber derramar em palavras uma sensação que eu sempre tive guardada comigo e nunca expus a ninguém. Descobri então que não era inédita (alguma será?), mas não ligo mesmo para exclusividades, o egoísmo dá a volta quando me vê, por isso senti um imenso alívio ao saber que em algum lugar perdido da África aquela mesma luz, antes tão minha, resplandeceu e iluminou a jornada de autoconhecimento de um homem desorientado. Mesmo que só na ficção.
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