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Uma das principais coqueluches entre os roteiristas da atualidade é retratar as diversas variáveis sociais contemporâneas através de um roteiro fragmentado. Lançam-se várias peças aparentemente desconexas ao longo da narrativa para ao final compor um só quebra-cabeça, que pretende se revelar, por meio de suas camadas, como um recorte específico de um mesmo contexto temporal. É uma tentativa arriscada, e poucos são os que driblam as dificuldades de conexão e conseguem sair vitoriosos da empreitada. Para o talento artesão de cada Robert Altman, temos os remendos malfeitos de vinte Alejandro González Iñarritu, uma equação nociva à saúde de qualquer espectador.
Estreando na direção de longas-metragens, o ator Marco Ricca resolveu adaptar para o cinema o romance do escritor Marçal Aquino intitulado Cabeça a Prêmio, que possui uma estrutura recortada, numa mesma linha narrativa sobre a qual convergem histórias distintas. Um projeto ousado? Do ponto de vista do roteiro, sim. Até pela inexperiência de Ricca por trás das câmeras, as chances de esbarrar na superficialidade forçada amarrando situações de forma genérica era grande, mas, surpreendentemente, o agora cineasta contorna os desafios da montagem e fortalece seu filme através da coesão com a qual ele é engendrado.
A trama gira em torno de uma família de fazendeiros do Mato Grosso do Sul que se envolve com atividades ilícitas na fronteira com o Paraguai, desencadeando uma série de acontecimentos que mudarão o curso da vida dos envolvidos. É um drama de desilusões em uma região onde quase tudo é permitido, em que o trânsito de pessoas e mercadorias revela a instabilidade de um microcosmo e a incapacidade de lidar com o equilíbrio emocional. Todos os personagens possuem um rompante de fúria ou desespero, e a edição organiza os sucessivos descontroles que ali acontecem de forma a respeitar tanto a construção do próprio personagem como a posição do espectador diante deles.
O cenário é de uma beleza desoladora, a câmera explora as vastas planícies inabitadas e silenciosas do Pantanal sem apelar para imediatismos, construindo uma linha de tempo que passa ao largo do julgamento moral e se estabelece por meio de contrastes, tanto psicológicos quanto geográficos, mas sempre de maneira sóbria, sem os tiques histriônicos e deslumbrados que marcaram as estréias na direção dos também atores Selton Mello e Matheus Nachtergaele. É um filme essencialmente de personagens, e a ponderação no desenvolvimento das particularidades de cada núcleo, alheia a arroubos estéticos e invencionices desnecessárias, garante um tom solene à narrativa que permite a evidência de suas principais qualidades.
Através de uma aproximação sutil, mérito tanto do roteiro de Ricca, escrito em parceria com Felipe Braga, quanto da engenhosa montagem de Manga Campion, a desintegração lenta e gradual de uma família se enlaça ao cotidiano de dois matadores de aluguel e de um ambicioso jovem piloto paraguaio. Há um esmero muito particular na elaboração dos personagens, sem pressa, respeitando as nuances de comportamento próprias a cada um e criando personalidades verossímeis, longe de soarem como fantoches humanos a serviço de um discurso sociológico. A Marco Ricca não interessa divagar sobre questões inerentes à modernidade, cuja estrutura fragmentada do texto possibilita; sua pretensão termina na composição de um ambiente onde a harmonia é desatada por uma onda de violência, conseqüência direta das ações dos envolvidos no jogo.
Dotado de uma segurança que impressiona em se tratando de um cineasta estreante, Cabeça a Prêmio, o filme, é a carta de intenções de uma direção pulsante, que se ampara na força do texto e na consistência da montagem para compor um mosaico de personalidades que se chocam a todo instante, desencontradas e insatisfeitas, buscando na fronteira do Brasil uma afirmação para suas identidades. Com este filme, Marco Ricca entra na galeria de cineastas brasileiros pela porta da frente. Que seja bem-vindo.
Cabeça a Prêmio (Marco Ricca, 2009)
Texto a ser publicado no Laboratório Pop hoje à noite. Enquanto posso, subverto a lógica da prioridade. É um exercício divertido.
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