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Um texto sobre Nosso Lar, a hecatombe que se traveste de cinema mas não passa de uma sessão espírita inflada por efeitos especiais e uma trilha cujo drama só falta transbordar da tela. Poderia ser outra coisa. Não sei como, mas poderia. Que fosse cinema, no mínimo, e não uma propaganda ilustrada da forma mais floreada do mundo. O texto será publicado amanhã em outro canal e é voltado para quem não possui nenhuma informação sobre o filme, por isso o tom formal e moderado (dentro do possível).
O centenário de nascimento do médium Chico Xavier mobilizou estratos da comunidade espírita que reverberaram de forma intensa no cenário cultural brasileiro neste ano de 2010. Foram dezenas de livros publicados, documentários produzidos para a televisão, programas revivendo casos famosos atribuídos ao espiritismo, uma cinebiografia que até a presente data angaria o posto de filme nacional mais visto do ano e agora a adaptação para as telas do livro mais famoso psicografado por Chico Xavier, Nosso Lar.
A massificação da religião no Brasil e a expressividade de sua influência sobre a sociedade são dois dos principais fatores capazes de explicar o sucesso de obras ligadas à fé, já que o nível de qualidade destas é quase sempre muito baixo. O que importa é a mensagem, e não o meio. Basta lembrar que o disco mais vendido na história da música brasileira ainda é do padre Marcelo Rossi.
Nosso Lar conta a história de André Luiz, um médico que, após morrer, padece durante certo período em uma espécie de purgatório até ser conduzido à comunidade que dá nome ao filme. É um jogo de contrastes brutal, como manda o figurino da ingenuidade infantil. O inferno é sujo, escuro, com zumbis desesperados e animais selvagens; ao passo que o nosso lar surge como a ante-sala do céu, recheado de planícies floridas, casas rosas e azuis, pessoas de roupas brancas, clima de eterna primavera e até mesmo laptops conectados com médiuns terrestres! O cenário materializa com ares modernosos as suposições de um plano que sintetiza grande parte dos desejos que acumulamos ao longo da vida. Se hoje somos induzidos a pensar que a tecnologia está ligada à elevação do homem, porque na vida após a morte, como nos sugere o filme, não poderíamos andar em naves voadoras e freqüentar hospitais com camas flutuantes?
Após passar por tormentos no sítio da expiação dos pecados, André tem a oportunidade de se redimir e passar por uma transformação espiritual ao adentrar as portas da nova comunidade. Do contato com uma nova percepção de mundo é que se desenrola a narrativa. André é incitado a rever seus conceitos, a repensar suas noções de humanidade e a equilibrar suas ações buscando sempre contribuir para o bem.
A despeito das inclinações religiosas de cada um, que não cabem ser questionadas aqui, o que mais incomoda em Nosso Lar é o didatismo que beira o amador utilizado para compor a narrativa. Nada é íntegro o suficiente para nos convencer das verdades ali dispostas. A começar pelo mais básico, os atores, que parecem robôs em suas falas mecânicas e desprovidas de emoção, atingindo frontalmente a veracidade dos conflitos cuja composição é intrínseca, alcançando assim níveis constrangedores de superficialidade e não raro debandando para um discurso demagógico, esvaziado de suas qualidades. Há um investimento muito pesado no tratamento visual do filme, que emula fitas como O Senhor dos Anéis (os momentos no purgatório, com montanhas enevoadas e cenários grandiosos) e Amor Além da Vida, vide a vasta palheta agridoce de cores que preenchem o espaço da comunidade extraterrena.
O objetivo é atrair o público jovem aos preceitos doutrinários do espiritismo, e talvez o diretor Wagner de Assis tenha em mente que a associação entre religião e modernidade é um gancho eficiente para a recriação do livro de Chico Xavier e a concomitante propagação dos ideais espíritas a um novo nicho de espectadores. Pode ser que ele esteja certo. Em outro planeta, onde não existisse cultura cinematográfica, talvez estivesse. Por enquanto, o que resta em Nosso Lar é um extenso manual de intenções que tropeçam umas nas outras e se concretizam de forma lamentável. E de intenções, bem, todos nós sabemos que logo ali há um lugar quentinho cheio delas.
Nosso Lar (Wagner de Assis, 2010)
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