[12:02 AM]
Noel tinha razão: o cinema falado é mesmo o culpado por toda a transformação. Se não, o que mais explica o fato de jamais ter surgido obra como Aurora? Na canção de dois humanos orquestrada por Murnau, nada desafina. Realizado em 1927, mesmo ano do surgimento do cinema sonoro, o filme impressiona em vários aspectos, principalmente pela naturalidade com que trafega por gêneros distintos e a maneira como, alternando instantes de tensão e lirismo com outros de arrebatamento puramente visual, arquiteta espaços heterogêneos e imprime uma harmonia consistente ao todo. A parte inicial, mais sombria, é de arrepiar: traz toda a atmosfera pesada do expressionismo alemão e se pauta pela presença fulminante de George O’Brien, cordeiro em pele de lobo. Mas depois da tempestade, já diz o ditado, vem a calmaria.
Muito se falou sobre o filme, e talvez a definição mais inspirada seja a de Scorsese (“um poema visual”), mas uma coisa eu não lembro de ter visto por aí: ao contar a história de um homem que rejeita a amante para ficar com a esposa, sua resistência ante a tentação, Murnau refaz o Gênesis. A serpente desliza provocante ao redor de Adão, destila seu veneno, força-o a comer a maçã – e ele mordisca, mas não vacila. Ao expulsá-la dos jardins do Éden, Murnau livra a humanidade da cruz do pecado e reescreve a história da civilização cristã. Mais uma vez, o cinema muda o mundo. E sem uma palavra sequer.
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