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Não fosse os russos, o que seria do mundo? Um lugar sem ressaca de vodka e com tenistas que só vestem moletom, no mínimo. E muito menos agradável de viver sem a literatura que lá foi produzida, certamente. Dizer que a leitura de Os Irmãos Karamazov vale uma vida inteira é chover no molhado – não é à toa que este sítio anda ensopado até as botas. Ontem mais uma vez tive a sensação de que a arte russa transcende as barreiras geográficas e nós sabemos bem disso. Pelo menos foi o que me sugeriu a visita que o Grupo Galpão fez a Tio Vânia, peça escrita por Anton Tchekhov e encenada com propriedade pela companhia mineira.
Em seus contos, Tchekhov revela as inquietações e angústias dos personagens por meio de movimentos sutis, delineados com a precisão cirúrgica do médico que suplementava o escritor. Não há grandes arroubos, explosões de ira – os vulcões se internalizam e o que vemos são só as faíscas dos tremores. Certa vez escreveu à atriz com quem se casaria: "Não faça cara triste em momento algum. (...) As pessoas que carregam há muito tempo uma mágoa e a isso se habituaram assoviam de vez em quando e ficam sonhadoras". A contenção é uma das principais marcas dos personagens do russo, e toda sua obra é marcada por uma inexprimível melancolia que não raro vem do olhar para um tempo que passou. É o mesmo olhar para o passado, para os dias de glória que já se foram, que move também as três irmãs da peça de mesmo nome, cujo processo de montagem pelo mesmo Galpão Eduardo Coutinho registrou em Moscou.
Tio Vânia é uma coleção de gestos incompletos, canções em dias de chuva e lamentos pelo que não foi. Uma família trancada em casa por conta de uma tempestade é o mote para raios de cinismo, resignação e revolta, que atravessam todos os que passam pela sala de jantar. Os russos sabem muito bem que a história de uma família é a história do mundo, e o texto de Tchekhov perpassa diversos níveis de dramaticidade para terminar em um monólogo aterrorizante, cuja esperança das palavras é pronunciada como uma marcha fúnebre e iluminada pelo último feixe de luz. Enquanto houver a literatura de Tchekhov, nós nunca descansaremos.
P.S.: A Árvore da Vida é realmente uma experiência sensorial das mais chapantes. Mas a publicidade hoje está tão presente em nossas vidas que acaba por diluir a força que as imagens de Terrence Malick possuem, e em alguns momentos há uma textura tão limpa que eu quase esperei pela logomarca do Itaú ao final. Mesmo assim é revigorante assistir no cinema a um filme com uma crença religiosa tão forte no poder das imagens: seja através da música, da presença alva da protagonista que entrega o filho a Deus e da ambição em recriar visualmente o surgimento do Universo, Malick afirma o caráter religioso do movimento e das pulsões que as coisas emanam. Só existe vida (e, portanto, cinema) quando existe movimento. É o encontro com Beto Guedes: “Tudo que move é sagrado”. Por isso a câmera que se desloca, como num fluxo contínuo, vasculhando o espaço, abrindo caminhos, construindo pontes. E quando ela nos convida a atravessá-las, vem a certeza de que dificilmente sairemos os mesmos.
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