[11:42 PM]
Um Dia na Vida, mais recente obra do Eduardo Coutinho, é um ato político que prima pela provocação. Uma sucessão de imagens de programas de televisão dispostas de maneira a ressaltar um segundo sentido através do atrito. O único controle do diretor sobre o material está na estruturação da montagem. Coutinho não produziu nada, apenas organizou as seqüências em uma linha cronológica, começando nas primeiras horas da manhã e terminando pela madrugada.
O que a princípio soa como um simples passeio pelos canais da TV aberta logo se transforma numa reflexão sobre a televisão e sobre como uma montagem que reagrupa cenas de conteúdo opostos induz a um questionamento crítico sobre este demonizado veículo de comunicação em massa. Décio Pignatari: só há comunicação quando há diferença. Coutinho enfileira Ana Maria Braga & pastores evangélicos & Jornal Nacional & novela da tarde & Chaves & Márcia Goldschimdt & publicidade & programa de fofocas & todo o circo sensacionalista que impera na programação aberta para procurar perguntas que precisam ser feitas. Todos os questionamentos, porém, só vêm à tona em função do cinema.
No debate após a sessão, Coutinho disse que o troço só existe enquanto exibido numa sala de cinema. Porque é através da transposição da plataforma que atentamos para as implicações políticas do gesto. O meio traz a mensagem. Ao retirar material televisivo da televisão e transportá-lo para o cinema, as imagens permanecem as mesmas, mas o significado que elas adquirem quando dispostas através de uma montagem um tanto irônica (pois pautada pela contradição) desafia as imposições do mercado e todo o ridículo em torno das concessões de espaço público. Sérgio Buarque, há trocentos anos, já assentia que a confusão entre privado e público é um dos principais conflitos que atravessam nossa sociedade. Who watch the watchmen?
Por meio de um dispositivo simples, um mundo de questões. Só não sei se o troço sobrevive a revisões. Seria interessante vê-lo novamente. Certo é que a presença do diretor depois da sessão torna tudo mais interessante e complexo. Coutinho atirou no peito dos que regulam os direitos autorais, esculhambou com as grandes emissoras e acenou para um futuro ainda pior, visto a invasão bárbara das igrejas na grade aberta. "Fascismo religioso", segundo o próprio, do qual é impossível fugir. Tomou emprestado imagens de outrem e deixou que elas mesmas depusessem contra si. Cutucar os concessionários da televisão brasileira é mexer com os grandes latifundiários da comunicação, por isso a importância desse material corajoso, que lança luz sobre um espelho que nem sempre reflete quem somos.
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