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“(...) Solitária e desamparada é a secretariazinha Delphine (Marie Rivière). Os adjetivos não me ajudam muito e não a ajudaram nada a ela. Delphine, desde que uma amiga lhe pôs os cornos e, em vez de passar férias com ela, resolveu passar férias com o namorado, na Grécia, se é solitária e desamparada, é chata como as coisas chatas. Como construir um filme sobre uma protagonista que não é bonita nem simpática e nos melhores momentos apenas nos faz uma certa pena? Como construir um filme com uma protagonista que chora baba e ranho porque queria passar férias em boa companhia, não o consegue e chateia de morte toda a gente que não tem culpa nenhuma disso? Como construir um filme sobre uma protagonista que não diz nada de particularmente interessante e se limita a desbobinar lugares comuns sobre astrologia, relações humanas, solidão e amor e a falar, falar, falar, sem que da boca dela saia uma só frase que retenha a nossa atenção? Já não me lembro quem, comparou-a a uma personagem de Simone Weil, insignificante e pobre, mas à procura de Deus. Eu penso mais no que Péguy escreveu sobre a Santa Teresinha do Menino Jesus, quando pôs Deus a dizer aos anjos qualquer coisa como isto: “Julgam que para fazer santos preciso de gente muito especial? Vou pegar uma mulher parvíssima, limitadíssima, possidoníssima e, com essa matéria, vou fazer a santa que vos há-de espantar a todos.” Rohmer pegou em Marie Rivière e fez essa Delphine, mais irritante que todas as burguesas dele (e, meu Deus, como ele sabe fazer burguesas irritantes!) e construiu a personagem que é aquela que mais me espanta em toda a história do cinema. Porque, sem ponta por onde se lhe pegue, sem ponta que se nos pegue, não conseguimos despegar os olhos dela, sentindo, contra a personagem e contra a atriz, que dali vai acontecer qualquer coisa de espantoso. Mas Rohmer é o último dos cineastas que sabe que o essencial, no cinema, não é da ordem da linguagem, mas da ordem do ontológico. E todas as paixões de Rohmer, de Hitchcock a Mizoguchi, de Murnau a Rossellini, pegaram em Delphine e a levaram de Cherbourg para Biarritz e de Biarritz para Saint-Jean-de-Luz, para transfigurar à luz do raio verde. 1986 foi o ano. Eu nunca vi o raio verde. Ouvi dizer que Rohmer, que filmou Le rayon vert em 16 milímetros, câmera à mão e sem qualquer script prévio, gastou metade do pequeníssimo orçamento que teve a mandar segundas e terceiras equipas do filme para todos os pontos da costa francesa, a fim de filmar o raio verde. Vi o filme dezenas de vezes e, seja ou não seja daltônico, nunca consegui ver o raio verde que Delphine viu no fim. Há um sol redondíssimo e amarelíssimo, há um mar todo azul, mas verde eu não vi. Mas acredito que Delphine viu o raio verde e que, a partir desse plano, plano final do filme, outra Delphine existiu e uma espantosa história de amor começou. Se não é este o milagre do cinema, não sei nem o que é milagre nem o que é cinema.” João Bénard da Costa sobre O Raio Verde, de Eric Rohmer (1986).
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