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- Uma das principais questões envolvendo Pacific, de Marcelo Pedroso, diz respeito aos limites da própria linguagem. Em tempos de descentralização tecnológica e portabilidade digital, para onde vai o cinema? Se nesta virada de século as sociedades atravessam mudanças que colocam em risco modelos pré-estabelecidos e desenham novas configurações de interação social, é natural que o cinema também anseie por maneiras alternativas de se realizar. O 3D, por exemplo, é uma delas: o último suspiro da grande indústria. E o documentário de Marcelo é outra, diametralmente oposta, pois se apropria de imagens produzidas por várias pessoas comuns para compor um tecido em que, a princípio, diversos olhares convergem para o mesmo. Digo isso porque é difícil, em função do controle de seleção e montagem, fugir de uma visão que questione as ações dos passageiros do transatlântico que ruma para Fernando de Noronha.
A exposição à qual eles se submetem traz à tona vestígios do comportamento de uma classe média ascendente, deslumbrada tanto com a presença em um cruzeiro como com a própria capacidade de registrar tudo em vídeo. Há aí uma questão ética importante, sobre como se lançar sobre esses filmes caseiros sem provocar um julgamento, sem condicionar o olhar do espectador a vícios fáceis, questão esta que o filme enfrenta e sai vitorioso ao sobrepujar o afeto por eles (aproximando-os de nós, ao injetar complexidade em suas construções) às tentativas de um mero reducionismo de classe. Suas várias camadas e possibilidades de leitura apontam para desdobramentos que dificultam um diagnóstico simplista, indo muito além de um mero veículo voyeurista. E posso dizer que entendi melhor a frase de Jean-Claude Bernadet (“o filme toca pontos sensíveis da contemporaneidade”) quando minha mãe, que não é muito íntima de aparelhos digitais, voltou da festa de aniversário da minha bisavó dizendo: “A festa foi ótima, você perdeu. Mas não tem problema, eu filmei tudo”.
- Apesar das afetações e de alguns maneirismos típicos de quem está começando, me surpreendeu a adaptação para a TV que Lars von Trier fez do roteiro deixado por Carl T. Dreyer para Medeia, uma das mais atraentes personagens da mitologia grega. Aqui, Medeia é transformada em uma feiticeira, uma bruxa que só veste preto e vive como uma sombra a ameaçar a cidade com seu silêncio e seus poucos gestos. Afora a vontade de querer fazer de todos os planos os mais bonitos já filmados, numa ânsia de grandiosidade e auto-importância que termina por enfraquecer o tom direto da narrativa, o filme constrói uma atmosfera densa de ar rarefeito sustentando com firmeza tal paradoxo, como mostra a cena em que a mãe prende seus filhos à forca. Mesmo longe de ser um grande filme, com alguns jogos de luz e sombra que evocam o expressionismo, ao menos é melhor que Melancolia, a bomba atômica que está em cartaz nos cinemas. Para este não há salvação. Por mais que a história tenha lá seu interesse, não dá pra valorizar um filme onde a câmera é tratada como se fosse um pandeiro.
- Em literatura, há um ditado que diz que é fácil escrever difícil; difícil é escrever fácil. Um dos grandes prosadores norte-americanos da segunda metade do século 20, Kurt Vonnegut escreveu uma dezena de livros, e a grande maioria deles é pautada por uma carga universal de humanismo, onde a afecção é mais importante que a ação. Não raro suas páginas trazem um sopro de melancolia próprio dos homens que apresentam uma lucidez aguda sobre o momento em que vivem. Talvez por serem dotados de maior clareza no olhar, tais indivíduos se inclinam ao isolamento e assim alcançam um grau de reflexão e expressão que os diferenciam daqueles que escrevem para se distrair, e não por necessidade. Vonnegut, que lutou na 2ª Guerra Mundial e vivenciou dias de Vietnã, sempre com uma posição crítica diante das intervenções do governo de seu país, frequentemente disfarça um sentimento de descrença por meio do humor, o qual utiliza como arma para tecer comentários ácidos sobre a humanidade, a política e o cotidiano dos homens.
Terminei recentemente Café-da-Manhã dos Campeões, que traz um dos personagens mais tristes da bibliografia do sujeito, um homem que vai progressivamente enlouquecendo à medida que se percebe um estranho em meio ao absurdo. Meu preferido continua sendo Matadouro 5, mas em Breakfast sua escrita sintética, despida de grandes sofisticações, ainda apresenta momentos de brilhantismo que tornam sua caneta única. Como este, por exemplo: “Concordo com Kilgore Trout a respeito de romances realistas e seus acúmulos de detalhes minuciosos. No romance de Trout, O banco de memórias pangaláctico, o herói está numa nave espacial de trezentos e vinte quilômetros de comprimento e cem quilômetros de diâmetro. Ele pega um romance realista da biblioteca de sua vizinhança. Lê cerca de sessenta páginas e então devolve o livro. A bibliotecária pergunta por que ele não gostou do livro, e ele responde: ‘Eu já conheço os seres humanos’. E assim por diante”.
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