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Ainda Drive: revendo pude perceber melhor alguns detalhes que evidenciam o reprocessamento de referências que faz com que alguns o comparem com Tarantino, o que apenas enriquece seu tecido narrativo (não a comparação, mas as fontes nas quais bebe e as apropriações que faz delas). Um dos meus aspectos preferidos no filme é a violência à luz do sol, durante o dia, na contramão da convenção que reserva a ação para as madrugadas e noites desertas. Aqui não, violão. Duas das mais poderosas sequências de assassinato do filme são banhadas por raios solares (o desfecho de uma delas, inclusive, se dá para nós por meio das sombras projetadas na calçada), o que me remeteu imediatamente a Halloween, de John Carpenter, o primeiro filme do qual me lembro em que o assassino ataca em momentos inesperados do cotidiano e também durante o dia (alguém lembra de outros filmes? Aliás, ainda tem alguém aí?). A máscara de dublê que remete a Mike Myers e as facadas apenas confirmam a hipótese dessa poderosa releitura.
Outro aspecto que muito me interessa é o descortinamento gradual de um microcosmo que revela camadas sórdidas e envoltas em vícios, como se as aparências fossem falsos invólucros (e a própria personalidade impassível do motorista, num primeiro momento, parece não corresponder às atitudes agressivas que ele assume mais à frente). Descobre-se, após o contato inicial, que a vizinha delicada é casada com um presidiário e que o dono de uma pizzaria tem ligações insidiosas com a máfia. Ou seja, só faltou mesmo encontrar uma orelha podre no jardim, já que o discurso de que nada é de fato o que aparenta ser dialoga fortemente com a mesma intenção de revelar as entranhas do submundo e suas relações com o habitual no Lynch de Veludo Azul (e em praticamente todos seus outros filmes). Há também o acordo final numa mesa de restaurante, cerimônia eternizada por Coppola em O Poderoso Chefão.
O Paolo disse que a cena do assassinato no mar o lembrou muito Abel Ferrara, mas ele não se recorda do filme e eu nunca assisti, porque não me lembro de cena semelhante no que já vi do Ferrara. Aliás, uma pena seu último filme ter sido cancelado no Festival por problemas na cópia. O Ricardo fez ligações com Steve McQueen e apontou a cena posterior ao tirambaço no banheiro do hotel, em que Ryan Gosling aparece com o rosto ensangüentado e sai lentamente de quadro, com o Charles Bronson d’um filme que não me lembro. E há ainda Adam Siegel, produtor do longa, cujo sobrenome entrega possíveis ligações perigosas com outro cineasta de responsa. Ou seja, um híbrido de boas referências que dialogam diretamente com a estética e o gênero de Drive, mas que denota a inteligência de Nicolas Winding Refn para muito além da simplificação ou da citação, buscando a aproximação como forma de garantir consistência a uma nova forma de criação intensificada também pela recorrente quebra de expectativas: o já citado estacionamento do carro como forma de fugir dos tiras; a farda policial e a subseqüente subversão de seu significado; o telefone que toca e não é atendido e a batida na porta que revela a ausência. A revisão segurou muito bem a onda. Continua um filmaço.
As Canções, de Eduardo Coutinho (2011) A canção que mais me marcou em um filme do Coutinho foi “Me and Bobby McGee”, da Janis Joplin, pela inserção inesperada logo no início de Babilônia 2000, quando cantada por uma moradora louca e alto astral do Morro da Babilônia. Seu uso revela o método usado pelo cineasta para projetar um imaginário nacional por meio de dispositivos comuns coletivos: a religião, o bairro de Copacabana, a vida no sertão e, agora, as canções. O que interessa a ele neste novo filme é um diálogo com as emoções que despertam a memória das pessoas através da música. Por isso, estamos falando tanto de música quanto de memória, e em quase todos os casos estas são lembranças de amores fracassados e desilusões marcadas por melodias. Mas quase não há música de corno, nem mesmo as inevitáveis do Roberto Carlos. O que há são pessoas se abrindo intimamente diante da câmera, cantando sem restrições e lembrando histórias de outrora, sempre provocadas pelas intervenções de Coutinho. O que, admito, me frustrou um pouco, principalmente depois das potentes investigações de linguagem propostas por Jogo de Cena, Moscou e até mesmo pela ousadia de Um Dia na Vida. Quando ele esteve no cineclube do qual faço parte, há uns dois meses, mencionou que queria voltar a fazer filmes simples e que inclusive já tinha um pronto – no caso, este. Na hora quis perguntar se sua pulsação inventiva ainda teria caminhos para desbravar, mas preferi assistir ao filme antes para não parecer presunçoso. O que As Canções mostra é que Coutinho retornou a uma zona de conforto e que continua a ter uma habilidade incrível para se comunicar com os mais diversos tipos de pessoas, mas este retorno revela também que seu cinema ficou grande demais para a fórmula que o consagrou, e por isso pede mais, parece não se contentar com o mesmo. O desgaste é evidente, mas Coutinho é forte até quando se repete, como grandes gênios de outros ofícios. É o mesmo que explica, por exemplo, o fascínio que João Gilberto ainda causa quando grava em disco, quarenta anos depois, “Chega de Saudade”.
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