qualquer coisa
num verso intitulado mal secreto
 

18.10.11


[12:18 AM]


O Cavalo de Turim, de Bela Tarr (2011)
Um episódio ligado aos últimos dias de lucidez de Nietzsche serve de catalisador para esta obra de imagens poderosas, que já no primeiro plano impressiona pela força com que se impõe diante de nossos olhos. Diz-se que Nietzsche, ao sair de casa num dia comum, viu um cocheiro espancando a chicotadas um cavalo que recusava mover-se de seu lugar. Após impedir que o ato de brutalidade se prolongasse, o filósofo abraçou o pescoço do animal e pôs-se a chorar, no que foi conduzido de volta a casa antes de mergulhar em um silêncio que durou dez anos e que culminou com sua morte. Por toda sua carga simbólica, o fato por si só é de uma densidade cortante, ainda mais se levarmos em conta que após presenciar a cena Nietzsche perdeu o controle de suas faculdades mentais e viu-se incapaz de se relacionar com o mundo exterior. Bela Tarr lança luz sobre o que teria acontecido ao cavalo depois da intervenção do filósofo, já que nada mais se soube sobre o animal.
Ao construir o universo hermético no qual supostamente viviam o cocheiro e sua filha, os donos do animal, Tarr aproxima a reclusão à qual se projetou Nietzsche ao isolamento que pontua os dias de poucos movimentos dos dois camponeses que habitam o pequeno casebre localizado em um ponto perdido do mapa. A casa possui apenas um cômodo, e a câmera desliza pelo espaço de forma tão envolvente que mal notamos a ausência de espaço. Pai e filha quase não se movem, quase não falam, interagem entre si sem olhar nos olhos um do outro e repetem os mesmos gestos ao longo dos dias, mas o ponto de vista da câmera, sempre à procura de outra maneira de se relacionar com os personagens e auxiliado por um deslumbrante preto-e-branco, nos dá a sensação de que cada movimento possui algo de original, pronto a ser descoberto. Talvez essa opção, marca estética do cinema do húngaro, seja a escolha ideal para lançar a ideia de que o esvaziamento da ação não pressupõe ausência de movimento, e da mesma maneira que existe ação na imobilidade dos personagens que se arrastam pela casa, existiu intensa produção de pensamento no cérebro de Nietzsche durante seus dias de incomunicabilidade. A casa como metáfora da cabeça, o movimento (e não a ação) como condição intrínseca ao pensamento. Ainda sem conhecer a fundo sua filmografia (além deste, só assisti O Tango de Satã, que mesmo com suas dificuldades de comunicação vale a carreira de vários cineastas medíocres), é revigorante ser contemporâneo e poder presenciar o acontecimento de obra tão intensa e descrente quanto O Cavalo de Turim.
Inquietos, de Gus Van Sant (2011)
Conciliando obras com maior apelo comercial e outras de caráter plenamente desafiador, Gus Van Sant oscila como alguém que se propõe versátil ao transitar com naturalidade entre posições estéticas que nos últimos anos vêm travando um confronto público entre si. Se em Last Days há a investigação do espaço através de uma dilatação do tempo que beira o insuportável (e por isso soa extremamente provocador), Milk apresenta um cineasta disposto a dialogar com um público menos afeito a experimentação, soando até careta em certos momentos ao falar de um período histórico que combatia justamente a caretice de uma geração. Inquietos, seu novo filme, abre mão de qualquer pulsão possível tanto na forma como no conteúdo para narrar uma história de desajuste e solidão, temas recorrentes em sua filmografia. Nada parece funcionar, e mesmo o diálogo mais brando entre o casal aparece diluído, sem graça. Os atores se esforçam para garantir alguma consistência aos personagens, mas o filme dá sinais claros de que nem o próprio cineasta acredita no que está fazendo. Em vários momentos soa preguiçoso, com um uso excessivo e óbvio de planos e contraplanos, parecendo ser o resultado de um laboratório de direção inspirado na estética de Gus Van Sant. Não há o mínimo interesse em contornar os clichês mais desgastados do romance juvenil, e beira o constrangimento o uso da trilha sonora como forma de nos convencer de que há ali uma carga de vida que a debilidade das imagens, sempre muito plásticas e insípidas, não foi capaz de ressaltar. Parece até o último filme do Matheus Souza, ao qual eu tive o desprazer de assistir ao primeiro corte. O discurso dos filmes de Van Sant versa em grande parte sobre questões que enlaçam o imaginário dos jovens em um mundo destituído de sentido, o que muda é o enunciado do qual o cineasta se vale para engendrar seus tratados. Em alguns, veste-se como um rebelde, transgressor, desrespeitoso às convenções; em outros, como uma menina de 13 anos que só usa rosa e se relaciona com o mundo de dentro de uma bolha. Inquietos, apesar do título, está neste último grupo, por isso é tão frágil e despido de relevância. Espero que não demore muito para que a bolha estoure e as roupas sejam lançadas violentamente pela janela. Já é hora de voltar ao cinema.



 


é isso aí, bicho

 

 


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