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OUTUBRO
Ônibus 174 (José Padilha /2002) Este é o primeiro capítulo de um projeto que visa documentar a polvorosa realidade brasileira diante das feridas de nossa sociedade atual. Se não obteve a dimensão alcançada pelo projeto subseqüente do diretor, o badalado longa Tropa de Elite, visto por 178 mil pessoas apenas em seu fim-de-semana de estréia em SP e RJ (uma média espantosa de mil pessoas por sala), o discurso contundente e afiado se mostra envolto num espectro de imagens aterrorizantes, que não carecem de um pingo sequer de ficcionalidade para impressionar. Padilha ancora sua narrativa em imagens de arquivo, documentos e depoimentos de policiais presentes à ocasião, assim como de algumas sobreviventes do seqüestro ao ônibus 174, na Zona Sul do Rio de Janeiro, em 12 de Junho de 2000. Intercalando momentos de extrema tensão com reconstituições faladas e filmadas do incidente, há uma trama paralela que procura evidenciar o contexto no qual veio desembocar a tragédia, que acabou com dois mortos, uma estudante e o próprio seqüestrador. A recomposição dos passos de Sandro, menino de infância pobre, que assistiu ao assassinato da mãe, freqüentador de internatos, presente no massacre da Candelária, preso inúmeras vezes e, por fim, morto por policiais por suposto sufocamento, mostra uma necessidade primordial de Padilha de atribuir a uma instituição, seja ela qual for, o resultado dessa situação. E, diante de condições precárias de vida que proporciona a milhões de pessoas, o Estado opressor e indiferente parece ser o algoz ideal das pretensões de Sandro. E a sociedade brasileira, que assiste a todo esse forro de acontecimentos e não se mobiliza, limitando-se a apenas recolher-se ao comodismo de achar que o problema está além de seu alcance. Penso que o documentário partilha uma visão um pouco cruel do Brasil e de seu povo, já que trabalha a todo momento com generalizações. E definir culpados, além de não ser uma alternativa que comporte ética e moral nas referidas conjunturas, é muito fácil em um momento como esse. A meu ver, o quadro de instabilidade que proporcionou a ocorrência retratada pelo documentário (e muitas, muitas outras) vai muito além dos mandos governamentais e é uma herança direta desse pesadelo que ainda nos acomete chamado Regime Militar. A ditadura é apenas o reflexo da inoperância governamental que veio resultar numa crise sem precedentes, cujos males se agravam substancialmente a cada eleição. Ônibus 174 é um documentário com uma carga expressiva de realismo, e basta essa característica, e só ela, para nos atentar do estado absurdamente crítico que a cada dia bate com mais força à nossa porta.
Uma Mulher Sob Influência (A Woman Under The Influence, John Cassavetes /1974) Influência de quê? Ou de quem? Num primeiro plano, Cassavetes parece não se interessar em responder tais perguntas, talvez até porque suas elucidações sejam irrelevantes diante do objetivo principal do cineasta de retratar a problemática vida de uma família de classe-média baixa americana. As dificuldades mínimas do dia-a-dia, o trabalhoso cuidado com os filhos, as preocupações domésticas em soma com a pressão instaurada por uma vida regrada constroem os enlaces que desarmonizam o ambiente familiar e causam uma espécie de disfunção mental em Mabel, personagem interpretada com toda a grandiosidade do talento de Gena Rowlands, naquela que certamente figura entre as maiores atuações femininas de todo o cinema. Se a mão firme condutora de Cassavetes é um ponto chave na esquematização do roteiro, que tanto impede o filme de descambar num amontoado de clichês e situações montadas como dá consistência aos seus personagens, é ela também que monitora a psicologia central da história e corrobora uma descentralização da doença de Mabel, revelando assim uma estrutura familiar convergente e mais unida do que aparenta ser. Sejamos felizes juntos, na alegria e na tristeza, na saúde e na doença. Se o filme permaneceu inédito nos cinemas brasileiros por inacreditáveis 33 anos, o momento nunca foi tão bom para descobri-lo e para desvendar cada ato de intimidade que a câmera capta no lar bagunçado de sentimentos da sociedade de baixa renda. Através de uma percepção atemporal e sincera, Cassavetes radiografa de maneira exemplar o objeto que sempre se manteve no âmago de seus estudos enquanto cineasta: o ser humano, suas contradições e a incapacidade de se localizar num ambiente esquálido e débil. E também, acima de tudo, nunca um filme chegou ao fim com um olhar tão fraternal sobre a família, instituição máxima do homem, quanto neste caso. A cena final, belíssima, mostra que não importam as influências e os problemas que nos atormentam, é sempre hora de lavar os pratos e arrumar a mesa, pois a vida continua e cabe a nós vivê-la.
À Prova de Morte (Death Proof, Quentin Tarantino /2007) Nos créditos finais, os agradecimentos entregam tudo: dos vários nomes que surgem rolando na tela, entre vivos e mortos, vemos Brian De Palma e Sam Peckinpah. E não há como negar que estas são duas das maiores influências do cinema moderno e carregado de ícones de Tarantino, o homem que ainda não fez filmes ruins. Se por um lado toda a iconografia de De Palma (principalmente durante os anos 80) se configura na construção das personagens, dos espaços e do efeito de um sobre o outro, toda a estética violenta de Peckinpah se mostra herdada por um cinema que, especialmente neste caso, alia passado e presente com uma competência superada apenas pelo excelente trabalho de recriação de Jackie Brown. E o talento do cara é tão grande que ele carrega os 114 minutos de projeção num clima de pleno divertimento, a ponto de eu imagina-lo no set gritando “Ação!” com uma garrafa de cerveja na mão e aparentemente descompromissado. Mas seu cinema, uma fonte inesgotável de referências e homenagens explícitas às suas maiores paixões, é ancorado por uma consistente dinamização de aspectos dos mais diversos tipos, a começar pela sempre afiada construção de diálogos e se estendendo pelo campo visual, onde há brincadeiras com a montagem (cortes abruptos e intencionais em certas cenas, riscos na tela), com a fotografia (alternância de planos coloridos & preto-e-branco), e com a habitual eficiência da trilha sonora. Se há a intenção de homenagear o cinema grindhouse da década de 70, com personagens majoritariamente femininos, marginais e tipos dos mais estranhos, a estrutura do filme, dividida em dois blocos, possibilita a Tarantino uma execução com maior amplitude de todas as idéias que parecem jorrar de sua cabeça a cada segundo. E para os que pretendem esperar até a absurda data de estréia do filme, em 31 de Março de 2008, uma constatação pra lá de animadora: os closes nos pés, nos rostos e nas pernas continuam e, além de estar mais tarado do que nunca, Tarantino resolveu compartilhar conosco um batalhão de mulheres que tornam seu filme ainda mais irresistível. E imperdível!
Transilvânia (Transylvania, Tony Gatlif /2006) É uma produção extremamente bem sucedida quando compõe o campo visual e insere suas personagens dentro dele, realçando os ambientes lúgubres e sombrios da Romênia para contar uma história de desencontro e perda de identidade de pessoas com personalidades similares ao meio em que se situam. Tudo vai muito bem até que a primeira personagem resolve falar e revelar ao espectador uma carência de habilidade textual gritante, que chega não só a empobrecer os perfis pessoais como também o resultado final das ações. Gatlif mostra competência para tratar dos corpos físicos que se movimentam a todo instante, enquanto descarregam toda a carga emocional numa dança frenética ou numa corrida desenfreada floresta adentro. Mas, novamente, vem a constatação de que, infelizmente, nenhuma das personagens sofre de mudez ou é adepta do silêncio como modo único de salvação do filme. Quando Asia Argento, suja, com olheiras, descabelada, e também por isso linda, revela num diálogo pra lá de previsível que está ali procurando por amor, resolvi relaxar e assistir ao filme sem a preocupação de encontrar coerência em seus dispersos objetivos. E, pelo resultado levemente positivo que ficou, parece que foi melhor assim. Marcadores: john cassavetes, josé padilha, quentin tarantino, tony gatlif
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