qualquer coisa
num verso intitulado mal secreto
 

31.10.07


[1:20 AM]

Sobre 2014 ou o ano em que meu país sairá de férias.

Depois de 64 anos o Brasil voltará a sediar uma Copa do Mundo. A notícia gerou reações dúbias por parte da imprensa especializada e nos noticiários em geral, muitos a receberam com um misto de desconfiança e alegria, mesmo sabendo que será difícil comparecer aos estádios devido ao alarmante preço dos ingressos. Porque, como todo mundo sabe, Copa do Mundo é evento feito para turista, para os americanos que ainda passeiam por Havana, para os alemães que voltam rosados para casa após férias em praias européias, para os japoneses executivos e todos os outros com extratos bancários gordos provenientes da Suíça. O Brasil também será beneficiado, dólares circularão como água nas mãos de camelôs, milhares de empregos formais e informais serão gerados, a indústria tecelã lucrará horrores com camisas de Robinho e Alexandre Pato (que certamente serão dois dos melhores jogadores do mundo em 2014), e isso sem contar no setor do turismo, nos hotéis, no comércio, nas cervejarias, nas empresas de transportes interestaduais, enfim, a Copa vem para corroborar o aquecimento de uma economia em plena ascensão. Mas qual será o preço de todo esse show?

Ricardo Teixeira, o homem da cartola preta por trás de tudo, disse que, após o sucesso do Pan 2007, o Brasil está mais do que preparado para arcar com a realização de uma Copa do Mundo. Aliás, completou o homem, nada mais justo para um país cinco vezes campeão mundial e berço dos melhores jogadores do futebol atual e do maior atleta do século XX. Pura conversa fiada. É de conhecimento geral que os Jogos Panamericanos foram um atentado contra os cofres públicos, com desvios de verba por todos os lados numa teia de corrupção que corroeu a bandeira nacional. Porque até hoje ninguém se propôs a esclarecer a respeito do escândalo orçamentário do Pan, com um planejamento inicialmente previsto em torno de R$800 milhões e sucessivamente estourado até alcançar o patamar de inacreditáveis R$3,6 bilhões? Como explicar as obras inconclusas que impediram a realização de jogos de basquete e esgrima, se tudo estava devidamente calculado e dentro dos planos? E onde foi investida toda essa grana, sendo que os principais estádios brasileiros continuam com as mesmas deformações estruturais e com graves problemas de segurança?

Durante entrevista coletiva realizada após o anúncio da vitória do Brasil, Teixeira se irritou com uma jornalista canadense que o indagou em relação à violência que acomete as prováveis cidades-sede dos jogos. A resposta, de tom anti-ético e indelicado, veio em forma de arame farpado: "Não tivemos nenhum problema no Pan, graças ao policiamento intenso. Agora, problemas como nos Estados Unidos, onde matam adolescentes em escolas, pelo menos isso não tem no Brasil." Mas é claro que não tivemos problemas de segurança no Pan, já que a única solução plausível para deter a força criminal da capital carioca foi colocar o exército e as tropas de choque na rua. Na Copa, não duvido nada que eles escalem o Capitão Nascimento e seus asseclas para manterem a ordem e a integridade dos turistas. E qualquer imprevisto que vá para a conta do Blatter.

Eu espero que as futuras gestões governamentais se imponham sobre os interesses burocráticos do líder da CBF, que não esconde através de sua caraça mal-humorada o espectro de um lobo muito bem relacionado e com interesses assaz perversos. Porque se o dinheiro público tiver que ser aplicado na elaboração desse projeto, que cada vez mais assume um ar de neo-JK - 50 anos em 7 -, e ele certamente será, que haja uma fiscalização rígida e que o espaço para impunidades fiscais seja completamente esvaziado. A Copa do Mundo é o evento esportivo de maior dimensão no planeta, todos os países envolvidos (e até os que ficam de fora) se mobilizam e voltam suas atenções para os pés de seus respectivos representantes, além da imensa projeção nacional que traz para o país que a sedia. Tudo o que nós precisamos é de, ao menos uma vez na vida, responsabilidade e profissionalismo para sermos vistos lá fora como queremos ser, como uma nação forte, equilibrada, socialmente responsável e condizente com seus problemas.

Caso contrário, será hora de prepararmos os ovos e os tomates e nos curvarmos novamente diante da nossa inexorável incapacidade, escutando mais uma vez os ecos das sábias palavras de Augusto de Campos.




 


é isso aí, bicho

 

22.10.07


[1:43 AM]


A primeira vez que eu ouvi sobre um tipo de literatura que abarcava “romance de não-ficção” eu não entendi muita coisa. Como é que, partindo de um processo criativo individual e exclusivo, alguém poderia imprimir um tom documental na narrativa e com isso fundir uma estrutura dentro da outra, atenuando assim os limites entre as duas propostas? Eu sabia que podia ouvir palestras, ler ensaios e assistir várias aulas nas turmas de jornalismo que não seria capaz de compreender essa façanha. Como remediar essa defasagem, então? A Sangue Frio, de Truman Capote, é o livro ideal pra se entender esse novo patamar alcançado pela literatura jornalística. São quatro tiros de carabina no rosto de um pai, uma mãe e seus dois filhos, quatro tiros à queima-roupa que colocaram fim em seis vidas. E que redefiniram os conceitos de criação literária desde então.

O livro começa destrinchando todo o processo que acarretou nos brutais acontecimentos da fatídica noite de 15 de novembro de 1959. A precisão descritiva de Capote nos leva à atraente casa da família Clutter, um lar de pessoas convencionais como as que cruzam por nós todos os dias, com seus desajustes, suas crenças e afazeres cotidianos devidamente respaldados. Só que o escritor não se contentou em apenas retratar o dia-a-dia de um núcleo da sociedade americana, com suas tortas de cereja e suas missas dominicais. A ambição de Capote foi também a sua ruína, e, cansado do convívio com a futilidade que envolvia a nata da sociedade americana, o cara então se debruçou sobre todo tipo de informação a respeito do assassinato dos Clutter, contida em matérias de jornais, de televisão, de laudos criminais e médicos, ou por meio de entrevistas com os habitantes do condado de Holcomb, com os conhecidos da família, com os investigadores do caso e, por fim, com os dois assassinos. Mas a sua escrita necessitava de algo a mais que a simples descrição dos fatos. É aí que está todo o diferencial de A Sangue Frio: a inserção da psicologia nos reflexos das personagens.

Essa tipo de meta-ficção, que parte de um argumento real e, a partir dele, propõe um novo olhar sob os referidos acontecimentos, tem uma proximidade muito forte com o cinema. “O autor deve deixar a sua imaginação correr livremente sobre os fatos”, afirmou Capote, numa frase que Fellini fez de princípio condutor de seu cinema pós-. E a narrativa de Capote, precisa, assustadoramente real e detalhada, reconstitui com uma concisão cinematográfica todo o mistério que envolveu o assassinato da família Clutter, desde as motivações para o crime até a morte na forca dos dois assassinos. 400 páginas que voam, e com um poder tremendo de fazer com que seu conteúdo fique na cabeça por vários dias. Vale a pena assistir também o bom filme Capote, de Bennett Miller, que conta com uma interpretação afetada e oscarizada de Phillip Seymour Hoffman no papel do escritor, e que retrata todo o período que englobou desde os acontecimentos em Holcomb até a publicação do livro, em 1966.


E só pra continuar nas paredes ensangüentadas e nos cartuchos de rifle usados, ninguém poderia imaginar que, depois de vinte anos, os Coen iriam soltar uma nova versão de Gosto de Sangue - o primeiro filmaço da dupla - com alguns minutos a menos e algumas adições à trilha sonora. E ninguém poderia prever também que o impacto do filme seria ainda maior do que quando foi lançado nos cinemas, em 1985. Naquela época, eles eram apenas dois aspirantes a cineastas num momento onde nada de realmente inovador acontecia no cenário independente (John Cassavetes lançara Amantes um ano antes, e sua veia experimental ainda não era compreendida pelo público americano, que insistia em ignorar o imensurável valor de suas obras) e uma estagnação começava a se desenhar. Foi então que, com 1,5 milhão de dólares - que na tela parece ser muito mais -, Joel e Ethan Coen fizeram seu primeiro filme, um noir com um texto surpreendentemente inteligente e mordaz.

Frances McDormand, mulher de Joel, foi escalada para viver a protagonista da história, uma mulher tranqüila que se envolve num triângulo amoroso com um funcionário do bar comandado por seu marido. Se há uma influência notável de Hitchcock e seu conceito de “homem errado”, a construção ambiental e o trabalho com os atores são elementos decisivos na concepção da narrativa. Os Coen são mestres em montar situações de extremo nervosismo e em extrair risos destas, mas aquele riso incômodo, causado por uma sensação de pleno desconforto. O tratamento dado aos personagens é de grande importância: toda a seriedade de McDormand e John Getz contrasta com o sarcasmo de M. Emmet Walsh (numa atuação sensacional) criando assim um jogo que vai muito além do envolto em diálogos. O domínio da linguagem é grandioso e a direção, mesmo iniciante, se mostra tão madura que, num ato preconizador de genialidade, os irmãos engendram uma seqüência fundamental na história, de quase 10 minutos e sem uma fala sequer (!!!), sintetizando visualmente todo o conflito da trama. E embora o DVD esteja num fullscreen horroroso, nem esse e nem qualquer outro empecilho é capaz de diminuir a força do filme de Ethan e Joel Coen.


Gosto de Sangue (Blood Simple, Joel & Ethan Coen, 1985)



 


é isso aí, bicho

 

16.10.07


[11:16 PM]

Tropa de Elite (José Padilha, 2007)

O que dizer sobre Tropa de Elite que já não tenha encontrado eco em qualquer faculdade, mesa de bar, escritório, banheiro, fila de banco ou qualquer ambiente que suporte mais de duas pessoas? Devidamente trajado com o fardo de maior fenômeno do cinema brasileiro dos últimos tempos, o filme de José Padilha desencadeou uma série de discussões que passeiam por vários aspectos distintos, dos referenciais cinematográficos da obra - como o uso da narração em off do personagem de Wagner Moura - até os desdobramentos sociais que o filme propõe e suas respectivas causas e efeitos. Eu ainda não sei se gostei ou não do que vi a ponto de defendê-lo com uma argumentação consistente, esperei tanto tempo para assisti-lo numa sala de cinema que um aglomerado de informações se acumulou desde o vazamento até a estréia, e agora percebo que careço de uma revisão para um melhor esclarecimento das questões embutidas no discurso de Padilha.

O filme incomodou o Brasil inteiro e ninguém saiu indiferente da sala de cinema (ou da sala de casa, já que a pirataria proporcionou a projeção adiantada no aconchego de mais de 1,2 milhão de lares). Incomodou a polícia, que é tratada como corrupta e despreparada; incomodou a burguesia, que é abordada como a causa efetiva de toda a questão que envolve o tráfico; incomodou os jovens da PUC, que são vistos como a extensão desse mal, já que inúmeras crianças morrem diariamente para que um estudante acenda um baseado; incomodou os assistentes sociais, que atribuem um olhar demasiadamente humano a seres despidos desse polimento, que são os traficantes; e incomodou os policiais do BOPE, que são caracterizados por métodos primitivos de atuação e de comportamento. E, ao final, fica a pergunta: de que adiantou incomodar tanta gente para resumirem o filme como fascista ou como um mero “comercial do BOPE”, quando ele não corresponde a nenhuma das duas classificações?

Embora toda a construção narrativa, apoiada no off excessivo do personagem de Wagner Moura, contribua para uma parcialidade avaliativa da situação atual do país, não procede a afirmação de que o ponto de vista do filme seja o de um oficial torturador e desumano como o Capitão Nascimento. A teia esquematizada por Padilha é híbrida e talvez por isso tenha sido incômoda a tantos núcleos: há espaço para reflexões acerca de diversos patamares da realidade brasileira, as ONG’s, os estudantes, a burguesia, os traficantes, a polícia e o papel que cada um tem adotado para lidar com a situação do tráfico. Por isso não vejo validade num discurso que acuse o filme de um "comercial do BOPE", e basta atentar para as conseqüências da instituição sobre o personagem principal para desbancar tal teoria: as crises de pânico, a instabilidade do casamento, o choro em casa e a necessidade imediata de se ver fora daquele mundo (várias cenas do cotidiano caseiro de Nascimento justificam essas conseqüências, a paralisia durante o rapel e a explosão de raiva com a mulher são as mais emblemáticas).

E não deixa de ser admirável um filme brasileiro de ficção que não tenha a atitude provinciana de construir vítimas, e com culhões suficientes para apontar o dedo na cara dos vilões. E no contexto no qual a ação transcorre todo mundo é vilão, e o que impede essa cortina de ser aberta a olhos nus é simplesmente a hipocrisia com a qual as pessoas enxergam a questão das drogas. Em duas seqüências, o traficante passa 4kg de maconha a um estudante para ser vendido na faculdade, mas ninguém se pergunta quem coloca aquela droga no alto do morro. Quem faz com que carregamentos pesados atravessem as estradas brasileiras para serem consumidos no Centro-Sul? Quem paga as toneladas de drogas que ultrapassam nossas fronteiras estrangeiras e são refinadas e distribuídas em cidades do litoral? Com a conivência de quem nós vivemos sob o cerco iminente de um ataque generalizado com conseqüências drásticas? E é sob essa esquematização que Padilha engendra seu ponto de vista, sem julgamentos morais ou éticos, e retrata o dia-a-dia de homens diluídos em meio a um sistema cujos princípios são determinados por meio de hierarquias cifradas, sem espaço para movimentações humanitárias.

Mas, acima das questões sociais que partem da trama, Tropa de Elite é – e principalmente com esses olhos precisa ser devidamente encarado - um filme policial de primeira qualidade. A câmera inquieta e frenética armada à mão, a montagem dinâmica de Daniel Rezende, os flashbacks explicativos e o final em aberto corroboram a posição de “filme de gênero” tão carente no cinema feito no Brasil. Minhas reveses cabem apenas ao roteiro, que, numa ânsia de abarcar várias discussões e construir outros pontos de vista à margem do Capitão Nascimento, perde o foco durante o segundo ato do desenvolvimento narrativo, reencontrando-o já próximo da impactante conclusão. E se a pirataria ajudou ou não na consolidação da obra pouco importa, o que mantém o filme de José Padilha teso no arco da conversa é sua inegável qualidade e a coragem de se auto-assumir como retrato cru de uma sociedade onde ninguém presta. E onde as coisas só tendem a piorar.




 


é isso aí, bicho

 

10.10.07


[2:56 AM]

OUTUBRO


Ônibus 174
(José Padilha /2002)
Este é o primeiro capítulo de um projeto que visa documentar a polvorosa realidade brasileira diante das feridas de nossa sociedade atual. Se não obteve a dimensão alcançada pelo projeto subseqüente do diretor, o badalado longa Tropa de Elite, visto por 178 mil pessoas apenas em seu fim-de-semana de estréia em SP e RJ (uma média espantosa de mil pessoas por sala), o discurso contundente e afiado se mostra envolto num espectro de imagens aterrorizantes, que não carecem de um pingo sequer de ficcionalidade para impressionar. Padilha ancora sua narrativa em imagens de arquivo, documentos e depoimentos de policiais presentes à ocasião, assim como de algumas sobreviventes do seqüestro ao ônibus 174, na Zona Sul do Rio de Janeiro, em 12 de Junho de 2000. Intercalando momentos de extrema tensão com reconstituições faladas e filmadas do incidente, há uma trama paralela que procura evidenciar o contexto no qual veio desembocar a tragédia, que acabou com dois mortos, uma estudante e o próprio seqüestrador. A recomposição dos passos de Sandro, menino de infância pobre, que assistiu ao assassinato da mãe, freqüentador de internatos, presente no massacre da Candelária, preso inúmeras vezes e, por fim, morto por policiais por suposto sufocamento, mostra uma necessidade primordial de Padilha de atribuir a uma instituição, seja ela qual for, o resultado dessa situação. E, diante de condições precárias de vida que proporciona a milhões de pessoas, o Estado opressor e indiferente parece ser o algoz ideal das pretensões de Sandro. E a sociedade brasileira, que assiste a todo esse forro de acontecimentos e não se mobiliza, limitando-se a apenas recolher-se ao comodismo de achar que o problema está além de seu alcance. Penso que o documentário partilha uma visão um pouco cruel do Brasil e de seu povo, já que trabalha a todo momento com generalizações. E definir culpados, além de não ser uma alternativa que comporte ética e moral nas referidas conjunturas, é muito fácil em um momento como esse. A meu ver, o quadro de instabilidade que proporcionou a ocorrência retratada pelo documentário (e muitas, muitas outras) vai muito além dos mandos governamentais e é uma herança direta desse pesadelo que ainda nos acomete chamado Regime Militar. A ditadura é apenas o reflexo da inoperância governamental que veio resultar numa crise sem precedentes, cujos males se agravam substancialmente a cada eleição. Ônibus 174 é um documentário com uma carga expressiva de realismo, e basta essa característica, e só ela, para nos atentar do estado absurdamente crítico que a cada dia bate com mais força à nossa porta.

Uma Mulher Sob Influência
(A Woman Under The Influence, John Cassavetes /1974)
Influência de quê? Ou de quem? Num primeiro plano, Cassavetes parece não se interessar em responder tais perguntas, talvez até porque suas elucidações sejam irrelevantes diante do objetivo principal do cineasta de retratar a problemática vida de uma família de classe-média baixa americana. As dificuldades mínimas do dia-a-dia, o trabalhoso cuidado com os filhos, as preocupações domésticas em soma com a pressão instaurada por uma vida regrada constroem os enlaces que desarmonizam o ambiente familiar e causam uma espécie de disfunção mental em Mabel, personagem interpretada com toda a grandiosidade do talento de Gena Rowlands, naquela que certamente figura entre as maiores atuações femininas de todo o cinema. Se a mão firme condutora de Cassavetes é um ponto chave na esquematização do roteiro, que tanto impede o filme de descambar num amontoado de clichês e situações montadas como dá consistência aos seus personagens, é ela também que monitora a psicologia central da história e corrobora uma descentralização da doença de Mabel, revelando assim uma estrutura familiar convergente e mais unida do que aparenta ser. Sejamos felizes juntos, na alegria e na tristeza, na saúde e na doença. Se o filme permaneceu inédito nos cinemas brasileiros por inacreditáveis 33 anos, o momento nunca foi tão bom para descobri-lo e para desvendar cada ato de intimidade que a câmera capta no lar bagunçado de sentimentos da sociedade de baixa renda. Através de uma percepção atemporal e sincera, Cassavetes radiografa de maneira exemplar o objeto que sempre se manteve no âmago de seus estudos enquanto cineasta: o ser humano, suas contradições e a incapacidade de se localizar num ambiente esquálido e débil. E também, acima de tudo, nunca um filme chegou ao fim com um olhar tão fraternal sobre a família, instituição máxima do homem, quanto neste caso. A cena final, belíssima, mostra que não importam as influências e os problemas que nos atormentam, é sempre hora de lavar os pratos e arrumar a mesa, pois a vida continua e cabe a nós vivê-la.

À Prova de Morte (Death Proof, Quentin Tarantino /2007)
Nos créditos finais, os agradecimentos entregam tudo: dos vários nomes que surgem rolando na tela, entre vivos e mortos, vemos Brian De Palma e Sam Peckinpah. E não há como negar que estas são duas das maiores influências do cinema moderno e carregado de ícones de Tarantino, o homem que ainda não fez filmes ruins. Se por um lado toda a iconografia de De Palma (principalmente durante os anos 80) se configura na construção das personagens, dos espaços e do efeito de um sobre o outro, toda a estética violenta de Peckinpah se mostra herdada por um cinema que, especialmente neste caso, alia passado e presente com uma competência superada apenas pelo excelente trabalho de recriação de Jackie Brown. E o talento do cara é tão grande que ele carrega os 114 minutos de projeção num clima de pleno divertimento, a ponto de eu imagina-lo no set gritando “Ação!” com uma garrafa de cerveja na mão e aparentemente descompromissado. Mas seu cinema, uma fonte inesgotável de referências e homenagens explícitas às suas maiores paixões, é ancorado por uma consistente dinamização de aspectos dos mais diversos tipos, a começar pela sempre afiada construção de diálogos e se estendendo pelo campo visual, onde há brincadeiras com a montagem (cortes abruptos e intencionais em certas cenas, riscos na tela), com a fotografia (alternância de planos coloridos & preto-e-branco), e com a habitual eficiência da trilha sonora. Se há a intenção de homenagear o cinema grindhouse da década de 70, com personagens majoritariamente femininos, marginais e tipos dos mais estranhos, a estrutura do filme, dividida em dois blocos, possibilita a Tarantino uma execução com maior amplitude de todas as idéias que parecem jorrar de sua cabeça a cada segundo. E para os que pretendem esperar até a absurda data de estréia do filme, em 31 de Março de 2008, uma constatação pra lá de animadora: os closes nos pés, nos rostos e nas pernas continuam e, além de estar mais tarado do que nunca, Tarantino resolveu compartilhar conosco um batalhão de mulheres que tornam seu filme ainda mais irresistível. E imperdível!

Transilvânia (Transylvania, Tony Gatlif /2006)
É uma produção extremamente bem sucedida quando compõe o campo visual e insere suas personagens dentro dele, realçando os ambientes lúgubres e sombrios da Romênia para contar uma história de desencontro e perda de identidade de pessoas com personalidades similares ao meio em que se situam. Tudo vai muito bem até que a primeira personagem resolve falar e revelar ao espectador uma carência de habilidade textual gritante, que chega não só a empobrecer os perfis pessoais como também o resultado final das ações. Gatlif mostra competência para tratar dos corpos físicos que se movimentam a todo instante, enquanto descarregam toda a carga emocional numa dança frenética ou numa corrida desenfreada floresta adentro. Mas, novamente, vem a constatação de que, infelizmente, nenhuma das personagens sofre de mudez ou é adepta do silêncio como modo único de salvação do filme. Quando Asia Argento, suja, com olheiras, descabelada, e também por isso linda, revela num diálogo pra lá de previsível que está ali procurando por amor, resolvi relaxar e assistir ao filme sem a preocupação de encontrar coerência em seus dispersos objetivos. E, pelo resultado levemente positivo que ficou, parece que foi melhor assim.

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é isso aí, bicho

 

3.10.07


[4:07 PM]

O rio


Sim, parece que é assim, que você se foi dizendo não sei o quê, que você ia se atirar no Sena, ou coisa parecida, uma dessas frases de noite alta, misturadas de lençol e boca pastosa, quase sempre na escuridão ou com pedaços de mão ou de pé roçando o corpo de quem mal ouve, porque faz tanto tempo que mal ouço você quando diz coisas assim, isso vem do outro lado dos meus olhos fechados, do sonho que outra vez me atira para baixo. Então está bem, que me importa se você se foi, se você se afogou ou ainda caminha pelo cais olhando a água, e além disso não é verdade, porque você está aqui adormecida e respirando entrecortadamente, mas então você não tinha ido quando se foi em algum momento da noite, antes de que eu me perdesse no sonho, porque você havia ido dizendo alguma coisa, que ia se afogar no Sena, quer dizer que teve medo, renunciou e de repente está aí quase me tocando, e se mexe ondulando como se algo trabalhasse suavemente no seu sonho, como se de verdade você sonhasse que saiu e que depois de tudo chegou aos molhes e se atirou na água. Assim uma vez mais, para dormir depois com a cara ensopada por um pranto estúpido, até as 11 da manhã, a hora em que trazem o jornal com as notícias dos que se afogaram de verdade.

Você me faz rir, coitada. Suas trágicas determinações, esse jeito de andar batendo as portas como uma atriz de tournées de província, a gente se pergunta se realmente você acredita nas próprias ameaças, em suas chantagens repugnantes, suas inesgotáveis cenas patéticas untadas de lágrimas e adjetivos e histórias. Você mereceria alguém mais dotado que eu para que lhe desse a réplica, então se veria formar o casal perfeito, com o estranho mau cheiro do homem e da mulher que se destroçam olhando-se nos olhos para garantir o distanciamento mais precário, para sobreviver ainda e voltar a começar e a perseguir inesgotavelmente sua verdade de terreno baldio e fundo de caçarola. Mas você sabe, escolho o silêncio, acendo um cigarro e ouço você se queixar (com razão, mas o que posso fazer), ou o que é ainda melhor, vou adormecendo, quase embalado por suas imprecações previsíveis, com os olhos entrecerrados confundo ainda por um instante as primeiras lufadas dos sonhos com seus gestos num ridículo camisão, sob a luz do abajur que nos deram de presente quando casamos, e acho que afinal durmo e levo, confesso-lhe quase com amor, a parte mais aproveitável dos seus movimentos e acusações, o som estalante que deforma os seus lábios lívidos de raiva. Para enriquecer os meus próprios sonhos onde jamais alguém pensa em se afogar, creia-me.

Mas se é assim, pergunto-me que está você fazendo nesta cama que tinha decidido abandonar pela outra mais imensa e mais deslizante. Agora acontece que você está dormindo, que de quando em quando mexe uma perna que vai mudando o desenho do lençol, parece zangada com alguma coisa, não muito zangada, é como um cansaço amargo, seus lábios esboçam um rito de desprezo, deixam escapar o ar entrecortadamente, recolhem-no a breves inspirações, e acho que, se não estivesse tão exasperado por suas falsas ameaças, admitiria que você é outra vez bela, como se o sonho restituísse você um pouco para o meu lado, onde o desejo é possível e até a reconciliação ou novo prazo, algo menos turvo que este amanhecer onde começam a rodar os primeiros carros e os galos desnudam abominavelmente sua horrenda servidão. Não sei, já nem sequer tem sentido perguntar outra vez se em algum momento você se tinha ido se era você que bateu a porta ao sair no mesmo instante em que eu escorregava para o esquecimento, e talvez seja por isso que prefiro tocar em você, não porque duvide que esteja aí, provavelmente em nenhum momento você deixou o quarto, talvez um golpe de vento fechou a porta, sonhei que você tinha ido, enquanto você, pensando que eu estava acordado, gritava sua ameaça aos pés da cama. Não é por isso que toco em você, na penumbra verde do amanhecer é quase doce passar a mão por esse ombro que estremece e me rechaça. O lençol só cobre você pela metade, meus dedos começam a descer pelo terso desenho de sua garganta, inclinando-me respiro seu hálito que cheira a noite e a xarope, não sei como meus braços enlaçaram você, ouço uma queixa enquanto você arqueia a cintura negando-se, mas os dois conhecemos muito bem esse brinquedo para acreditar nele, é preciso que você me abandone a boca que arqueja palavras soltas, de nada vale que seu corpo amodorrado e vencido lute por escapar, somos a tal ponto uma mesma coisa nessa embaraço de novelo de lã, onde a lã branca e a lã negra lutam como aranhas na cópula. Do lençol que mal cobria você, consigo entrever a lufada instantânea que sulca o ar para se perder na sombra e agora estamos nus, o amanhecer nos envolve e reconcilia numa só matéria trêmula, mas você se obstina em lutar, encolhendo-se, lançando os braços sobre minha cabeça, abrindo como um relâmpago as coxas para voltar a fechar suas tenazes monstruosas que gostariam de me separar de mim mesmo. Tenho que dominar você lentamente (e isso, você sabe, eu sempre fiz com uma graça cerimoniosa), sem lhe causar dano vou dobrando os juncos dos seus braços, abraço-me a seu prazer de mãos crispadas, de olhos enormemente abertos, agora seu ritmo afinal se afunda em movimentos lentos de moiré, de profundas borbulhas subindo até meu rosto, suavemente acaricio seu cabelo derramado no travesseiro, na penumbra verde olho com surpresa minha mão que goteja, e antes de escorregar para o seu lado sei que acabam de tirar você da água, tarde demais, naturalmente, e que você jaz sobre as pedras do cais, rodeadas de sapatos e de vozes, nua e de barriga para cima, com seu cabelo ensopado e seus olhos abertos.



do livro Final do Jogo, de Julio Cortázar, 1971.

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é isso aí, bicho

 

2.10.07


[12:30 AM]

O Festival do Rio, três cineastas, seus respectivos últimos filmes e um fim de semana.






Ou é preciso dizer mais alguma coisa?




 


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